quarta-feira, 31 de março de 2010

O medo

O medo não é uma sensação, um sentimento - é mais do que isso: uma síndrome. No corpo é um coquetel de substâncias que são jogadas no sangue fazendo com que a pessoa mais calma e sensata do mundo dê um pulo mortal, um grito, um soco... O contrário também é verdade.

O medo paralisa, o medo estupidifica, o medo. O medo, o medo, o medo.

Uma coisa no entanto é aquele gosto de vacina que se sente na boca diante de uma situação de alerta, de risco (real ou não... aliás, a noção de real... fechemos esse parênteses, a questão é importante): a noção de real e ou irreal é irrelevante aqui. O medo, assim como outros estados fundados em emoções ou sentimento fortes, tem o poder de abolir as fronteiras entre uma coisa e outra, entre uma ilusão e um fato (na verdade, a diferença entre um e outro se encontra na reflexão - mas isso é pra outro momento. Para a pessoa que tem medo, a existência do objeto é certa.





Sim, mas como dizia, uma coisa é o medo da adrenalina, na hora, naquele exato instante. Outra coisa é o medo reflexivo - como assim? Aquele medo que só é percebido depois, quando se relê um acontecimento ou um ato tais como uma agressão aparentemente gratuita ou a desagradável hipertrofia de uma discussão que nem deveria ter existido. O medo às vezes também move montanhas. Se significa reação diante de algo, positivamente a mesma reação na direção contrária é uma ação - em geral negativa...

O medo cega, o medo confunde, o medo paralisa.

Qual o segredo então? Digo, pra se acabar com o medo.


Sei lá!

Vai depender do medo. Um medo de alturas não é o mesmo medo que alguém tem de perder alguém. Radicalmente falando, o medo é algo sempre individual - sim, pois mesmo uma galinha sabendo ou entendendo que a mão que a alimentava agora vai pegá-la como alimento, ao correr, se pudesse fazer as reflexões que se fazem aqui e entendesse que o medo é coisa da sua cabecinha de galinha e que portanto, poderia tentar arrumar um jeito de controlá-lo (com meditações ou o que quer que fosse), seria mais feliz, ou menos infeliz, mesmo diante da morte...

Enfrentar o medo, diluir o medo, ou eliminar o objeto do medo são algumas possibilidades. A última foi usada por Hitler, a segunda é a técnica budista, a primeira é dos livros de auto-ajuda ou da experiência pessoal de pessoas eficazes e efetivas no funcionamento da nossa sociedade objetiva e corajosamente burra. O problema é que no auge do medo é difícil seguir, por exemplo, a técnica da diluição do medo... Então parece que devemos tratar dele, do medo, antes que ele apareça - como se fosse uma doença.

Voilà.

Les dernières années de ma vie sont riches en motivations pour le courage et pour la peur aussi. L'entreprise d'affronter les peurs parfois a du succès, parfois non. Le courage poursuit, pourtant... Mais pas besoin de faire l'analysé devant le psychanaliste...

"Eu não tenho nenhum medo" - como diz David Duarte... se bem que isso é mais um mantra do que a verdade.


sábado, 27 de março de 2010

A coisa

A coisa


De repente ficou mudo. Assim como tudo, do nada. Uma palavra só não saía da boca. O que é isso, meu Deus?, quis ao menos pensar, mas nem isso se fez. E agora?

Tentou olhar em volta, no meio da sua dura e súbita imobilidade. Porém tampouco via o que se passava. Só sentia a coisa crescer dentro dele, embora que coisa não soubesse ser... no entanto óbvia, a se expandir, acontecendo... Tentou tocá-la – mas nada era tangível. E ouvir, meu Deus, podia? Também não, também não!

Tudo de uma paz tão funda... E ele completamente submerso. Respirava ainda. Devagar, muito devagar, mas respirava.

Percebeu –  pelo menos isso podia – que sentia. Sentia-se mais ou menos além do limiar do pensar. Ou aquém, não tinha a certeza; ali onde estava podia ser tanto o antes como o depois do momento e do lugar em que no segundo anterior estivera. Depois, um segundo que o mundo travara, desabando em pedaços infinitamente grandes e brancos. Um segundo só, descontínuo e inequívoco, em que tudo o que era simplesmente deixara de ser.

Isso tudo ele não pensava, só sentia.

Sem nenhuma base sobre a qual erguer uma investigação sobre o que, antes daquilo, o sustentara, foi tentando se estabelecer naquele vazio. Era difícil. Porque tudo era extremamente isso: vazio. Quis agarrar-se a qualquer idéia que passasse pelo que chamara de mente – mas nada passava. A única coisa que às cegas sentia, como a presença invisível que às vezes se sente à chegada de um silencioso estranho na sala, era que estava ali. Quem estava ali? Não sabia. Mas sabia que estava. Já era alguma coisa.

Seu único ato possível sendo respirar, respirou. Lenta, muito lentamente. Sem parar, como num contínuo fluxo – com o corpo todo... e então... tinha um corpo! Um frêmito se espalhou pelo que sentia como um corpo, fazendo surgir uma pequena alegria. Tinha alguma coisa. Sabia alguma coisa: que estava ali, tendo um corpo, e que este respirava.

Suas possibilidades assim aumentavam, sentia.

O passo seguinte foi olhar pra trás, pra ver o que teria sido. Cego porém de ver o espaço ao redor, viu-se igualmente cego de ver no tempo o passado, e muito menos o futuro. À frente só havia o presente, enorme, infinito, estrada longa, longuíssima; livre, à meia-noite do meio do tudo.

Se tivesse mãos, estariam atadas, se tivesse língua, esta não existiria, se tivesse pernas estariam quebradas, e se tivesse olhos, seriam como os do cego, que nunca os teve.

Inimaginavelmente despojado, sentiu-se, com incerta agonia. Embora inegavelmente preso e parado, era uma nuvem morna num dia quente. Havia calor. Flutuava imerso num mar cálido ao insípido sabor de... de nada. O gosto disso tudo era o do lamber o próprio sangue, beber a própria lágrima, comer talvez da carne própria... E o ar... o ar... o ar...

Era isso, a desconexão, os momentos desenvoltos fulgindo e fugindo como vagalumes no escuro: cada estado do que era se seguindo ao outro num processo inexorável de ir... porém tranqüilo, como o ritmo da respiração, o ar a ir, o ar a vir, e ele sentindo, suave sensação, à sucessão dos momentos, que talvez – meu Deus – não houvesse fim...

sexta-feira, 19 de março de 2010

Esse dias eu vi: Direito de amar


 Com um título desses minhas expectativas eram consideravelmente desconsideradoras. Tudo bem, não tinha lido a sinopse (30 segundos na net?) e claro que há um certo grau de burrice nessa avaliaçao do conteúdo pelo rótulo. (Peguei em Misto quente, do Bukowsky com nojo - pra depois nem migalha sobrar). Hei de voltar ao assunto do título em português.

O tecido da história é todo recortado: um pouco de meio no começo, um pouco de início na terceira quarta parte do filme, etc. Temos um homem que chegou aos seus quarenta ou talvez quase cinquenta anos vendo-se sozinho depois de perder o companheiro num acidente de carro. Vivera 16 anos com esse rapaz, mais novo do que ele e com quem construíra uma relação de amor intenso e verdadeiro (romântico) em plenos anos 1960. O filme narra o dia em que decide se matar do início da manhã até o fim da noite.

Vemos beijos, palavras meigas, lágrimas, muitas lágrimas, sorrisos, rapazes belos  flertando com o professor quarentão e bonitão. A amiga do professor bonitão, a Julianne Moore é apaixonada por ele, e sem saber, ao ligar à noite, relembrando o encontro deles mais tarde, faz com que o professor solitário adie por mais algumas horas seu suicídio. Mas eles brigam, e depois cabe a um aluno ousado mais um adiamento, altas horas da noite, desse suicídio.


Era pra tudo ter terminado bem. E as minhas lágrimas estavam se enxugando quando a m**** aconteceu no fim do filme. Um pqp brotou como uma agonia no escuro do cinema. Mas foi uma iluminação: Ele precisou cortejar a morte pra saber o valor da vida - e quando finalmente quis viver... vejam o filme. Esse é do tipo que deixa você com a cara doendo do tapa - e ontem, só o vento morno da noite dessa cidade tórrida, ao lado do meu amor (nuvens claro-escuras ao nosso redor) pra fazer essa dor na cara arder menos.








Quanto ao título: em inglês é claro e límpido: A single man. Homem solteiro, solitário, singular - sobretudo singular. Em português ficou parecendo um drama romântico Z: a jovem menina gorda e nerd sofreu um acidente e se apaixonou pelo enfermeiro loiro, forte e de olhos azuis... argh.

Levem lenço para Um homem singular. ("Um homem especial"? "Singular"? "Um homem só"? "Só um homem"? etc)

terça-feira, 16 de março de 2010

Nem só de pão

Nas mãos de Deus

Tinha os olhos mais lindos da escola e o nariz mais afilado e aristocrático também, e ainda por cima era magra. Tinha peitos certos, que com certeza eram o que sustentava a inclinação superior de seu nariz diante de todas as meninas e dos meninos que lhe cercavam o caminho. Todas as suas roupas pareciam terem sido feitas sob encomenda, e de certa maneira eram, já que nas lojas que freqüentava com as amigas as calças e shorts fossem desenhados para cinturas esguias e magrezas semi-mórbidas.

Por sua vez Camila tinha exatamente o nariz da avó, e sua ascendência autóctone estava clara dos pés à cabeça. Seus cabelos lisos e nigérrimos eram a única coisa que suas amigas não paravam de louvar. O silêncio eloqüente quanto ao resto Camila suportava como uma cruz.

Mas as feridas doíam já aos doze, quando ainda trazia certos quilos a mais da infância sem esforço e suor. Aos quatorze, com o corpo indeciso apesar da urgência das coisas e da vida que se via na televisão, a dor foi insuportável, sobretudo no dia em que até a menina de olhos lindos e nariz adunco se achou gorda na frente de todas as outras e do espelho do banheiro. Disse que tinha que perder dois quilos. Os olhos gerais de início se arregalaram, mas ao som do nome da modelo de todas, assentiram e também acusaram-se excessos e se planejaram sacrifícios.

Camila, já doída e fraca, também pediu por vinagre e calou e fechou a boca.

Uma semana depois, com muito esforço e vontade, deixara pra trás pelo caminho os dois quilos da outra e mais trezentos gramas de peso diante do espelho e das amigas. Todas se felicitaram, contentes. Menos a dos olhos lindos, que só alcançara um quilo a menos e de repente se sentira derrotada diante de Camila. De sua boca Camila ouviu dizer, pois, que mesmo sendo a que mais emagrecera, ainda era a maior de todas, com dois números a mais. Em silêncio, como era seu jeito normal, Camila aceitou o desafio, e para a semana seguinte prometeu-se uma calça frouxa, caindo.

Tinha dores de cabeça de fome. Os cheiros da cantina e da cozinha a entonteciam. Às perguntas da mãe respondia que já comera na casa de uma amiga. E na mesa comia o menos possível. No terceiro dia quase desmaiou no quarto, para à noite ter que convencer a mãe de que não estava doente. Teria que comer, aliás, teria que parecer que comia. O impasse não era insolúvel, seguiria as dicas das meninas. E para alívio da mãe, comeu no jantar como há semanas não comia. Devorou purê, arroz, carnes, doces, bolos...

“Me senti tão gorda depois...”, disse ao espelho das amigas no banheiro. “Mas depois você...”, disse o reflexo preocupado da outra. “Claro... Foi mais fácil do que eu pensava”, e riu. Estava três quilos mais magra e dois números menos larga. Diante da de olhos lindos, seu triunfo foi imenso.

Mas Ana, que estava ao seu lado, evocou um nome estrangeiro de faces encovadas e ossudas, e o gosto do triunfo se azedou, e aquele gosto de tudo do estômago pra boca voltou e, se mirando no espelho, o que viu foi tudo, menos ossudo e encovado. Era gordo. Adiposidade pura. Em casa tocou na barriga, beliscou-a e quase sentiu a textura úmida e oleosa da gordura que certamente abundava por debaixo da pele.

Olhando-se fixamente pensou e concluiu que teria que ser mais drástica.

Adotou um regime espartano que com o hábito se tornou espontâneo como um jeito de ser. Levantava atrasada para a escola a fim de passar direto pelo café da manhã, dizendo para a mãe que comeria na escola. Quando era obrigada a levar um sanduíche ou uma fruta, dava de comer a um menino que via na rua ou jogava no lixo. A hora do almoço era a mais difícil – ia à casa de Ana pra com ela trocar idéias sobre novas dietas de sopas e shakes magros e voltar pra casa tendo mentirosamente já almoçado. Este, quando de fato havia, era uma fruta ou uns biscoitos.

Todas as roupas de Camila estavam enfim frouxas e dentro dela a menina parecia flutuar. Era impossível não notar agora, inclusive as maçãs do rosto, óbvias e claras.

Mas a mãe de Camila, talvez devido ao que também via nas novelas e por saber que era traída pelo marido, certamente por uma mulher magra como ela já não era há décadas, só foi notar que a filha estava doente quando a viu tentar comer um tomate e sair correndo na direção do banheiro pra vomitar. Um repentino alarme soou, e com a filha nos braços foi ao hospital. Camila era leve... como quando tinha dez anos.

No fim do sétimo dia de agonia muda passada na cama branca da UTI, Camila descia a cova, aos braços dos homens desconsertados pelo quase nenhum esforço que faziam para baixar o caixão ao fundo da terra. O vento soprava nos vestidos pretos das amigas, marcando cada uma de suas silhuetas magras e secas, as quais casavam tão bem com a morte, que todos choraram copiosa e espantadamente.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Nem só de pão

Multiplicai-vos

1

A primeira vez que viu um rato de verdade foi quando se fazia a faxina mensal na casa de um amigo e foi encontrado um ninho quente num canto perdido do guarda-roupas.

Eram três filhotes rosas, pequenos, nus e frágeis. Eram cegos, e pareceram mais cegos e nus quando expostos à luz forte do sol do jardim e dos olhos dos meninos curiosos. Ele mais do que todos, ficou hipnotizado, e de pronto apaixonado pelos ratinhos. De cócoras, aproximando-se o mais que permitia o nojo que lhe fora cultivado, como que analisava sem entender cada gesto sem jeito dos filhotes, que ora se moviam muito inquietos, ora paravam, à espera.

Era quase um amor aquilo. De amor, pensava já como reagiria sua mãe se propusesse criar e cuidar daqueles filhotes, como se cuida de cães ou gatos... quando, do nada, teve uma idéia que lhe pareceu tão melhor e mais rica que não hesitou um instante diante das possibilidades, o que era contrário à sua natureza. Há muitos minutos contemplavam os ratos e o interesse dos amigos já se tinha ido, o que fez com que todos concordassem quando ele se apresentou para levá-los para longe e se livrar deles.

Arranjou uma caixa de sapato e com atenção e carinho conduziu as crias de mãe desconhecida até o outro lado da rua. 

Havia uma dona Marta numa casa, e muitos gatos na casa de dona Marta. O muro era baixo, e um dos gatos, um preto e velho, que vivia deitado no jardim, tinha apreço especial pelos carinhos do menino, e ao chamado deste, veio vindo, lerdo e interessado, rebolando maciamente e miando. Ao sair para a calçada, encontrou a caixa de sapato que o menino punha no chão.

O menino esperou, querendo muito o resultado do encontro. 

Na verdade pensara que veria mais gula, mais fome, mais vontade, igual ao que via nos desenhos na televisão. O deguste meio refinado do gato porém o impacientou. 

Não agüentando se curvou e cutucou um e outros, oferecendo-os entre si, pra agilizar o processo.

E foi então que sem nenhum sorriso, mas com uma satisfação que se via no estático da sua figura diante do espetáculo, assistiu e anuiu, contente, cada rato sumir, dócil e impotente, na boca apertada e sem pressa do felino...



2

Mais tarde dedicou-se aos estudos dos animais. O que foi de fato a conclusão clara desde criança para o que depois, e mesmo antes dos ratos, vivera: cuidar de cães abandonados, juntar formigas em recipientes de vidro para vê-las trabalhar; cultivar pequenas hortas e ver brotarem as sementes e crescerem as plantas; buscar ovos de calangos nos cantos dos muros e das pedras – quebrá-los e assistir a morte lenta dos lagartos prematuros; aprisionar borboletas num saco aos montes e depois soltá-las numa explosão de amarelo e asas; subir e descer com os peixes no aquário.

Já adulto, oficializara o seu interesse, e operacionalizara sua vontade de conhecer os meandros do funcionamento dos animais com estudos sérios e documentados.

Caíra de cabeça na química de seus corpos, na sua estrutura, no seu desenvolvimento e nas suas particularidades. Dissecava sapos e ratos com o maior prazer do mundo, agora orgulhoso e mais poderoso por ser capaz, antes mesmo de qualquer outro de seus colegas estudantes – pois em segredo já havia praticado aquilo várias vezes antes – de identificar cada sistema vital, cada processo vermelho e vivo que examinava e matava com suas pinças e lâminas ávidas.

Tinha certo apreço pelos ratos, por serem eles ao mesmo tempo tão insignificantes e significativos. Eram tão mamíferos quanto ele, quanto um gato ou um cachorro, mas  por azar não tinham a proteção do amor humano. Isso lhe dava muitos poderes. E sua vontade de ver e de saber exigia muito desses animais.

Além das experiências didáticas e aprovadas pela academia, fazia ele mesmo as suas próprias, que na maioria das vezes eram mais extrapolações e variações inusitadas daquelas que eram realizadas junto com os outros colegas.

Uma de que particularmente gostava a ponto de tê-la repetido algumas vezes, era a que analisava o imoral comportamento dos ratos de se devorarem aos companheiros e filhotes quando da ausência de comida.

Uma vez, às escondidas e com muita precisão, em casa mesmo, realizou o experimento ao seu jeito. Reuniu dois casais de ratos num devido lugar e deixou que se multiplicassem ao longo de duas gerações à base de uma calculada superalimentação. Meio deus, de cima, murmurou um alegre crescei e multiplicai-vos. Os ratos cresceram fortes e vigorosos. Gulosos, comiam de tudo com avidez crescente. Quanto mais lhes cedia dos restos de comida da casa, das rações de cão e gato, mais eles sentiam fome e comiam, ao ponto de terem sido observadas duas ou três mortes por problemas relativos à obesidade.

Seguiu com o regime dos ratos gordos até o nascimento da quarta geração, quando já se contava um número elevado de indivíduos. 

E de repente, como planejado, suprimiu drasticamente a alimentação dos roedores. De tudo no dia anterior, no dia seguinte não tinham mais nada os ratos.

E esperou. 

Não demorou muito para que aquilo que sabia que aconteceria começasse a se passar.



[Pessoas morrendo de comer picanha e outras de não comer nem um pouco menos que do básico, certos sacerdotes achando que ainda tem pouca gente nesse planeta e etc me fizeram pensar. Esses contos são o que pensei.]

segunda-feira, 8 de março de 2010

Do homem à mulher



Não, não vou usar a mitologia judaico-cristã como ponto de partida e fazer menção à história de que a mulher nasceu do homem. É muito machismo.

Também não vou propor uma linha evolutiva na qual o homem apareça como o primitivo e a mulher como resultado melhorado. É muito feminismo.

Non.

Na verdade quero falar sobre homens - ou masculinidades - e mulheres - ou feminilidades.

Nós como espécie, desde Darwin, procuramos em nós qualidades que nos diferenciem dos outros animais. Encontramos várias - que em geral existem nas outras espécies, mas de maneiras mais ou menos "evoluídas" ou "sofisticadas". Talvez a que mais nos distancie, ou nos torne mais originais como seres que se arrastam sobre a crosta desse planeta, seja a linguagem. Até onde sabemos, a nossa maneira de se comunicar é a mais complexa e completa que existe - não a mais eficaz (guerras mundiais e etc provam isso), mas a mais complexa sim. Suponhamos.

Nossa maior qualidade é a nosso maior obstáculo a uma compreensão maior das coisas que existem... Esse blá blá blá todo é pra dizer que a linguagem, as palavras enganam. Se uma frase como "um homem e uma mulher andam de mãos dadas na rua" remete a algo trivial e ultra-compreensível, é justamente porque "homem" e "mulher", mais que palavras, são ideias, categorias... Categorias servem pra agrupar - e agrupar siginifica passar por cima de certas particularidades, anular certas diferenças pra facilitar a compreensão e por fim, a comunicação. Olha - e que diabo é isso?

"Um homem e uma mulher andam de mãos dadas na rua" pode ser muita coisa. A palavra "homem" aceita tantas imagens: um anão asiático de cabelo loiro com chapeu coco e bota de couro rosa; um deficiente físico de barba arrastando no chão e óculos escuros; um travesti não-montado (isto é, sem seus trajes femininos e glamurosos), um senhor de idade respeitoso mas que sob o pênis possui rudimentos de uma vagina que horrorizou seu pai na hora do parto... Coisa parecida ou pior vale para a palavra "mulher". Por isso o título: do homem à mulher: como poderia ser do norte ao sul, do sol à chuva, do bem ao mal... ou seja, de um polo ao outro, de um extremo ao outro: essa é a maneira que nós seres humanos encontramos para expressar na linguagem a nossa vontade e tendência de simplificar as coisas: a invenção de opostos.

A oposição que existe entre bem e mal é a mais discutida por n razões. É mais ou menos de comum acordo hoje que essas são noções relativas. "O que é bom pra você pode não ser bom pra mim" é uma frase simples e pop que ilustra essa consciência. Entre o que os nossos pobres olhos classificam como claro e escuro existe uma série de nuances de faixas de luz que nem sonhamos em enxergar. Entre quente e frio existe uma gama de temperaturas que classificamos como morna, mais ou menos quente, mais pra quente, muito quente, etc... 

O ponto: entre homem e mulher é a mesma coisa. Não sou eu quem digo: é a observação a partir de uma banco da Praça do Ferreira. Visualmente já é difícil aceitar certos nivelamentos como o dos exemplos que eu dei acima. E parece que biologicamente a coisa e mais complicada ainda.

De vez em quando se fala em sexo biológico e sexo físico; em geral quando se trata de uma criança que teve o azar de nascer hermafrodita numa espécie tão complicada como a nossa. De vez em quando se fala que fulano é muito sensível e que cicrana é muito enérgica, é um macho. Todo mundo sabe que se um jovem forte e musculoso para de malhar e passa a tomar certos tipos de hormônios, mudanças interessantes irão com certeza acontecer... no seu peitoral por exemplo. Hormônios. Por fora há dezenas, centenas de maneiras de sermos homens ou mulheres, ou melhor ainda, sermos seres humanos - por dentro existem onze - foi o que li por aí: onze maneiras de as quantidades de hormônios masculinos e femininos se combinarem e se expressarem em forma de seres com pênis e cérebro de mãe; de seres com seios e vagina com vontades de garanhão...

Homem e mulher é uma maneira facilitadora que encontramos pra simplificar uma realidade que é bem mais complexa do que nos convém atualmente. De uma certa maneira ainda bem - se existisse uma palavra para cada um dos onze "gêneros" propostos, seria tudo meio complicado demais. Mas eles existem... e aí?

E aí que essa polarização, que é linguística, que foi necessária por muito tempo e facilita as coisas em muitos momentos, mas que passa por cima do biológico, está na raiz de muitos mal-entendidos... e mal-entendidos pra virarem ódio e agressão é um instante. 

Durante uma boa parte da história das nossas sociedades se considera a mulher um tipo de ser a parte, algo como um tipo de deficiência. É até normal se  usar definições negativas pra definir as qualidade femininas: a mais fraca, a mais dependente, a que têm menos iniciativa... Por quanto tempo não se viu nas mulheres apenas uma "qualidade": a de parir. Mulheres foram bruxas, e churrasco, e ainda são objeto sexual. Não que homens também nunca tenham sido - mas a ideia de mulher objeto é clara ainda na postura de uma boa parte dos homens.

Tudo começa nessa cisão: a oposição homem-mulher é tão forte que se esquece que existe um gênero humano. E esse é O Gênero. Um Gênero que se expressa de mil e uma maneiras, que cometemos o erro - hoje temos meios de entender que isso é sim um erro - de agrupar em apenas duas roupas, duas portas, duas fórmulas: homem, mulher.

Já disse que não gosto muito das coisas fáceis, e tentar fazer alguém aceitar que homem e mulher são conceitos culturalmente construídos não fácil, e que só consigo isso com aqueles que num ou noutro momento da vida se questionaram por exemplo sobre porque até certo ponto um ser humano é uma criança não importando o sexo, e depois desse certo ponto é um homem e uma mulher...? E mais que isso: se somos uma mesma espécie, como justificamos que tratemos de maneiras tão diferentes - e falo sobretudo para os seres humanos que se consideram pertencer à categoria "homem" - mulheres e homens?

Pensei em em escrever um texto exaltando as mulheres mas achei que isso seria trivial demais. E fácil. Metade do que sou, ou mais, é parte de uma mulher. Meu corpo, como todos os outros sete bilhões de corpos sobre este planeta, produzem hormônios femininos em doses equilibradas e contínuas. Em vários momentos da minha vida me senti, pelo menos psicologicamente, ou moralmente, ou eticamente, mais próximo daquilo que se convencionou chamar de femino do que daquilo que se convencionou chamar de masculino. Não penso que tenha a ver com sexualidade. É mais essencial do que isso. Eu sou um ser humano, e como todo animal, resultado da sua biologia (a razão também é resultado da biologia, do funcionamento do corpo: o cérebro é uma parte do corpo. Enfie uma agulha no cérebro e a sua moral e a sua ética e a sua "alma" ou vão sumir ou vão se modificar na hora mesmo). ..

Ah, eu me perdi. Isso acontece. Tudo é complicado demais. Só queria dizer que mulheres são seres humanos que injustamente, estupidamente foram mal tratados e vilipendiados com as justificativas mais aburdas possíveis - até Deus aderiu ao movimento machista, segundo certas figuras machistas de altas hierarquias de certas Grandes Instituições Milenares e Antiquadas... Esse seres humanos que nos mostram a maravilha da maternidade merecem todo o respeito. Se bem que o fato de haver um dia das mulheres e não haver um dos homens deve fazer pensar... Mas como já pensei e escrevi demais, uma flor para as minhas amigas, irmãs e mães - não importa de que sexo forem.

quarta-feira, 3 de março de 2010

02-03-1963 - 18-07-2007

Ontem foi dia dois de março. E as palavras vida e morte se uniram - duas águas que se misturam em ondas que nos sangram e nos matam às vezes.

Ontem foi dia dois e eu vou mergulhar em águas de mar das quais bebo todo dia. Essas águas não refrescam e não são as que formam a maior parte da vida que há em mim. Na verdade é uma como dose forte de hormônio da tristeza que circula pelos meus ciclos vermelhos de dentro e me esfria um pouco todo dia, me escurece um pouco toda noite, me dão sonhos pesados de vez em quando dos quais nem sempre acordo...

Essas águas são eternas porque têm o sal do mar - e, como o mar, dá vida a tudo o que existe nesse mundo, como também tira e um dia vai tirar de todos o que deu. 

Eu vim dessas águas - um abismo, um escuro quente, um escuro onde tive tudo que queria ter e um pouco mais - uma caverna úmida, um útero, um mundo meu onde era eu e Ela ao mesmo tempo.

Eu era carne de outrem e já era eu. O mistério da cisão, um em dois, foi a minha essência. E a essência era o mistério... que foi só parcialmente resolvido com o nascimento e a primeira inspiração, o primeiro fôlego do mundo de fora.

Daí pra frente, saído das águas quentes de mar, de mãe, tudo foi um processo de cada dia mais secura.

Eu evoluí como evoluiu o primeiro ser a pisar na areia até chegar ao que exatamente sou, que justamente não sei e inexatamente transcrevo em palavras em que me busco... e quando me busco encontro as mesmas águas, a mesma falta, o mesmo seco que é a vida sem a vida dEla.

Eu não sei e não quero dizer o vão vazio que é. Se conseguisse pronunciar a palavra exata que traduzisse as palavras lentas e pesadas e negras que fluem de vez em quando como uma lava gelada de dentro de saudade... se pudesse condensar toda dor e falta e medo e angústia e os nãos que me digo e que me foi a ida dEla, eu simplesmente contaminaria com seu som cadente e grave dessa os ânimos de quem pronunciasse ou ouvisse tal palavra... e basta a dor de um. A dor é sempre de um. 

Se bem que a minha dor e a dos meus irmãos são uma como somos um com Ela nessa coisa de carne e sangue.

Que nós sejamos Ela não basta. Se uma parte Sua vive em nós, uma parte nossa com Ela se foi  e isso dói. Dói de um jeito que se sente a própria matéria vibrando em morte, a nível pequeno e microscópico se decompondo como se o de que sou feito fosse feito de matéria escura e quase de "não"...

Há uma face de sol porém. A face e as palavras dEla eram de sol e me iluminam ainda e sempre. As lágrimas são chuva. E os dias são nublados, mas com luz.

Eu queria ir mais fundo nessas águas mas as mesmas não deixam e me pedem pra emergir com o risco de não querer voltar mais...

Não quero precisar dizer que esta vida que sou é pouco mais que nada sem a parte da dEla em mim. Seus olhos, Sua pele, Seus gestos e jeito são o que me fazem todo dia ser Vinícius e sobretudo nesse dia ser Você, que é aqui e sempre.