sábado, 27 de março de 2010

A coisa

A coisa


De repente ficou mudo. Assim como tudo, do nada. Uma palavra só não saía da boca. O que é isso, meu Deus?, quis ao menos pensar, mas nem isso se fez. E agora?

Tentou olhar em volta, no meio da sua dura e súbita imobilidade. Porém tampouco via o que se passava. Só sentia a coisa crescer dentro dele, embora que coisa não soubesse ser... no entanto óbvia, a se expandir, acontecendo... Tentou tocá-la – mas nada era tangível. E ouvir, meu Deus, podia? Também não, também não!

Tudo de uma paz tão funda... E ele completamente submerso. Respirava ainda. Devagar, muito devagar, mas respirava.

Percebeu –  pelo menos isso podia – que sentia. Sentia-se mais ou menos além do limiar do pensar. Ou aquém, não tinha a certeza; ali onde estava podia ser tanto o antes como o depois do momento e do lugar em que no segundo anterior estivera. Depois, um segundo que o mundo travara, desabando em pedaços infinitamente grandes e brancos. Um segundo só, descontínuo e inequívoco, em que tudo o que era simplesmente deixara de ser.

Isso tudo ele não pensava, só sentia.

Sem nenhuma base sobre a qual erguer uma investigação sobre o que, antes daquilo, o sustentara, foi tentando se estabelecer naquele vazio. Era difícil. Porque tudo era extremamente isso: vazio. Quis agarrar-se a qualquer idéia que passasse pelo que chamara de mente – mas nada passava. A única coisa que às cegas sentia, como a presença invisível que às vezes se sente à chegada de um silencioso estranho na sala, era que estava ali. Quem estava ali? Não sabia. Mas sabia que estava. Já era alguma coisa.

Seu único ato possível sendo respirar, respirou. Lenta, muito lentamente. Sem parar, como num contínuo fluxo – com o corpo todo... e então... tinha um corpo! Um frêmito se espalhou pelo que sentia como um corpo, fazendo surgir uma pequena alegria. Tinha alguma coisa. Sabia alguma coisa: que estava ali, tendo um corpo, e que este respirava.

Suas possibilidades assim aumentavam, sentia.

O passo seguinte foi olhar pra trás, pra ver o que teria sido. Cego porém de ver o espaço ao redor, viu-se igualmente cego de ver no tempo o passado, e muito menos o futuro. À frente só havia o presente, enorme, infinito, estrada longa, longuíssima; livre, à meia-noite do meio do tudo.

Se tivesse mãos, estariam atadas, se tivesse língua, esta não existiria, se tivesse pernas estariam quebradas, e se tivesse olhos, seriam como os do cego, que nunca os teve.

Inimaginavelmente despojado, sentiu-se, com incerta agonia. Embora inegavelmente preso e parado, era uma nuvem morna num dia quente. Havia calor. Flutuava imerso num mar cálido ao insípido sabor de... de nada. O gosto disso tudo era o do lamber o próprio sangue, beber a própria lágrima, comer talvez da carne própria... E o ar... o ar... o ar...

Era isso, a desconexão, os momentos desenvoltos fulgindo e fugindo como vagalumes no escuro: cada estado do que era se seguindo ao outro num processo inexorável de ir... porém tranqüilo, como o ritmo da respiração, o ar a ir, o ar a vir, e ele sentindo, suave sensação, à sucessão dos momentos, que talvez – meu Deus – não houvesse fim...

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