quarta-feira, 7 de abril de 2010

Uma carta - trecho

(Ainda no espírito pascalino (rs), dou uma barra de chocolate pra quem adivinhar o destinatário)

(...)

Olha, se sentisses o que eu sinto... serias eu. Quando sinto o que sentias ao dizer o que disseste, eu sou tu. Um fio do hausto que foi de ti pode ser meu nesse instante e eu não sei. Pelo que eu não sei eu choro... Mas as certezas tampouco me fazem sorrir: prefiro o sentir da dor de abrir caminhos em meio às pedras com as próprias mãos e pés. Me dá a tua mão: as manchas de sangue e terra sobre as linhas da vida se reconheceriam úmidas, e nós, casal insólito, seguiríamos, ardendo.

Que eu pareça entender mais o de dentro das tuas baratas do que o meu interior não me inquieta nem desloca. Isso tem gosto de renúncia, e na verdade é... Ou se tem o mundo ou se tem o eu. A renúncia da renúncia é ir além, não querer nenhum dos dois, é não querer. E eu não quero nem um nem outro... mas é que sem querer já tenho! Só não sei qual...

Quando eu era pequeno, Ângela, eu falava com as formigas. Me ajoelhava no chão bem perto delas e escutava. E elas diziam mais ou menos isso: um cheiro. Mas tão fraco e intrigante que eu queria mais, tonto. Minha grandeza de gente não deixava no entanto eu entrar no seu mundo e disso vem uma das minhas maiores dores: não participar de suas festas nem de suas coisas.

Hoje eu já cresci e não tento mais o trato com esses insetos arrogantes e herméticos. Ainda tento com as pessoas, como tu morreste a tentar. Mas quem sabe talvez um dia eu cresça de novo e...

O cheiro das tuas palavras me ordena como o de uma formiga à outra. Não sei o que, mas me ordena. Tanto é que às vezes choro e às vezes rio dizendo sim, e às vezes não ao mesmo tempo. Às vezes não consigo dormir com teu perfume rodando a minha cabeça – e outras vezes fico sonhando acordado. Só quando o vento sopra forte e bate a janela é que paro pra pensar e classificar se dormi ou acordei. É difícil. E desisto. Fico desse jeito então, como estou sendo agora, assim:

Sinto-me irmão teu nesse mundo de Babel porque falamos a mesma língua: língua solta, língua doida, poliglota. Tu, eu e outros perdidos freqüentamos a mesma fina sintonia de comunidade anônima: não no jeito torto de andar, ou de rezar, ou de querer – mas no de sentir. Na rua cheia nos sentimos sem nos vermos, uma coisa magnética e tácita como a terra sob os pés. Não nos saudamos para não nos revelarmos, por que não queremos essa liberdade; o que nós queremos ainda não tem nome, e enquanto à nossa língua não vier a palavra certa, fiquemos em silêncio e passemos apercebidos. O silêncio é nosso ósculo. No silêncio nosso revelamos onde estivemos de noite, nus, contigo, subindo o monte em delírio e... psiu!

Como tu, Ângela, eu sou cheio de segredos. Olha um: quando Ulisses te atacou, fui eu. Eu que rosnei, eu que te mordi. Pra saber até que ponto ia teu amor. Olha outro: a chama que te ardeu de noite, era eu ardendo. Atentado a favor da tua vida... e tuas células loucas pelo teu fim... adivinhou?

Estás vendo, é teu perfume me enlouquecendo, fã ensandecido...

Não tenho medo da minha loucura desde que me habituei à tua. Eras conscientemente louca, eu sei, assim como ainda conscientemente sei e sou da minha inconsciência anormal. É que a gente inventa. Tem que inventar... 



Viajo no teu mundo inventado e vivo em férias diárias que tiro do meu cotidiano. Em tuas cidades de interior vou descendo as ruas rindo como cavalo em relincho ao som de flautas, um pouco de Bach, Debussy e de outras coisas novas que nem imaginarias...  Ah, se ouvisses e visses o mundo de hoje, talvez enlouquecesses de vez, aí sim sem saber, como nós...

Teus mundos e cidades não são nossa fuga porém. O mundo é que é uma fuga – e eu sei lá de quê!

(...)