quinta-feira, 29 de julho de 2010

Google Earth e o primeiro peido

A cena não é desconhecida e, como faço de vez em quando, devo estar redescobrindo o óbvio, os detalhes são portanto desnecessários (crer que uma vírgula deslocada numa frase muda o sentido do que se diz me dá fuerzas), então:

Ser humano 1 entra em contato visual com ser humano 2 em ambiente Tal (que pode ser escuro com música e luzes esparsas, ou apertado cheio de cadeiras e pessoas atarefadas, ou aberto com pessoas em sequencia uma atrás da outra com finalidade em geral burocrática e fútil); por motivos que pouco se conhecem, logo em seguida cargas de neurotransmissores e hormônios começam a circular nas respectivas correntes sanguíneas; a depender do histórico de interações com e sem sucesso de cada um dos seres humanos, um ou outro ou ambos se aproximarão e talvez um contato verbal dará início a uma série de outros contatos de vários tipos. Que, com o tempo, repetir-se-ão e constituirão o que chamamos de namoro, ou, segundo o Orkut, relacionamento sério.

Voilà. Quando o namoro dura mais de três meses, as cenas de quando as pessoas se conheceram se investem de uma mitologia. Quanto mais tempo passa, as coisas mudam, e os Sócrates da vida aparecem. Porque?

O ser humano 1 para o ser humano 2 (e vice-versa)na primeira ou nas primeiras ocasiões de contato é como os campos de plantação da Dinamarca visto do Google Earth, ou como o deserto do Saara (visto do Google Earth), ou como os Lençóis Maranhenses, vistos do Google earth... Os desenhos harmoniosos do vento na areia, as depressões no terreno, as sombras dos cânyons... Ver tudo de cima, de longe, na proteção da tela do computador é que torna possível a mágica... agora vá se tacar no meio do deserto do Saara ou das plantações dinamarquesas ou nos lençóis maranhenses em tempo de seca... A experiência é bem outra. Mas é a que será vivida, mais cedo ou mais tarde, uma vez ou outra.


Passam-se os meses e vai-se conhecendo melhor a geografia do Outro, a cartografia dos limites e das emoções, a divisão administrativa do que se deve ou não se deve fazer... Aí é que se vê que aquela floresta de simpatia charmosa que do Google Earth era como um frescor social, de perto é uma floresta úmida cheia de bichos irritantes que gritam o tempo todo... aquele descampado cor de laranja do abuso, de cima tão colorido, é na verdade um deserto árido e cheio de cardos... Quanto mais se conhece alguém, mais se chega perto de tudo o que é bom mas também de tudo o que é ruim da pessoa.

Ser humano 1 e ser humano 2 então estão fadados a se desiludirem mutuamente até o choque de planetas e a final hecatombe?

Nem começaria a ter escrito isso tudo se acreditasse num anti-happy-end como esse.

Non, monsieur, madame. Não é porque Titanic me deu ânsia de vômito (exceto a parte do naufrágio) que preciso ser House na hora de amar. Mas um pouco de cinismo e realismo e talvez pessimismo faça bem pra todo mundo. Até pra contrabalancear a dose de romantismo venenoso que nos administram desde a nossa mais tenra infância via novelas e filmecos americanos.




Sim, as paisagens magníficas criadas pela distância são de fato belas, e a fase da sedução cartográfica dessas belezas é uma primeira fase do processo natural de aproximação de um ser humano a outro. As segunda e terceira fases exigem um certo esforço, uma certa boa vontade, um certo AMOR? Certamente. Quando o primeiro fluxo de ar vindo das entranhas da terra ou do corpo surge seguido de sensações olfativas assez désagréables, em geral é sinal de que as camadas tectônicas dos sentimentos já se estabilizaram suficientemente pra que coisas mais sólidas cresçam sobre elas... Metáforas, metáforas pra que te quero!

As fases ulteriores do estar junto também têm sua magia. Sobrevoar o Saara é coisa de turista – mas ninguém pode ser turista pra sempre. Dar uns passos na areia quente, ou na floresta cheia de mosquitos, faz parte do aprendizado de qualquer ser humano que não seja a Paris Hilton, financeira e emocionalmente. Negar-se o lado escuro da força de uma relação é, na minha humilíssima opinião, ter medo do escuro, fazer xixi na cama, não puxar a descarga nunca: ou seja, não crescer.



Mas como vivemos num tempo em que você pode escolher ser um idiota infantilizado mesmo depois dos trinta, se garanta. Seja, apenas. Há vários caminhos possíveis, o do hedonismo extremo é um deles. E não é o do martírio cristão sentimental o que se prega aqui. A idéia é: o que vem fácil vai fácil. Ninguém chega a doutor sem muito trabalho e esforço intelectual. No doubt, o mesmo vale pro sistema educacional das relações.

O que sei é, por mais clichê que possa parecer, o equilíbrio ainda é o segredo: meio quilo de paixão, meio quilo de frieza lógica. Uma parte de impulsividade para outra de cálculo...

Essa não é uma receita, é uma constatação. Se um ser humano é um mundo complexo que ninguém nunca entenderá, imagine a relação que se estabelece entre dois mundo igualmente complexos: traçar uma trilha na floresta de incógnitas é o máximo que se pode fazer.

Mais clichê, mais j’adore:

Vive La vie! Vive l’amour!

Ui.