domingo, 24 de abril de 2011

Conto de Páscoa

Estava eu chegando em casa, digamos, ontem. Dez vem em quando me passa pela cabeça, nesses tempos de violência e etc, de encontrar a porta aberta e as coisas fora de lugar - puro terror. Pois digam aí que foi isso que aconteceu! Meio sem pensar, passei pela porta e fui direto ao quarto. As coisas não estavam completamente bagunçadas, mas certamente havia alguém naquela casa além da minha medrosa pessoa. Mas é interessante notar que ao contrário do que deveria estar acontecendo, eu não me sentia aterrorizado, era como se estivesse sob o efeito de um calmante...

Computador ligado, livros abertos... Som de descarga no banheiro. Coração acelerado, pensei na ousadia de alguém invadir a sua casa e usar o banheiro. Esperei.

Quando a porta se abre, um homem desconhecido, nunca visto mais moreno e barbudo, perguntando por uma toalha.

Entre gritar e correr e dar-lhe um murro na cara escolhi apenas dizer:

- Quem é você?

O homem, como disse, era moreno, não muito alto, uma barba quase mal-feita. Estava vestido de roupas extremamente fora de moda - uma bata branca à la coroinha. A pele era de uma pefeição global - e não digo isso por que era límpida, na verdade havia até rugas e espinhas aqui e ali - se tratava antes de um brilho, de uma coisa... tinha feições meio árabes... judias aliás...

Pois e seu eu disser que a resposta à minha pergunta foi:

- Meu nome hebraico você não vai conseguir pronunciar, muito menos o divino - mas vocês me chamam de Jesus Cristo.

Pois pronto! O próprio, o mesmo, o Ele - chez moi, ali, aqui. Imaginem todas as palavras de espanto e comoção que vocês puderem - pois não foi isso que eu senti. Eu assenti, como se fosse um amigo meu que tivesse chegado. O absurdo de eu não estar estupefato começou a ser explicado pela impressão de que tinha alguma coisa a ver com emoções e sentimentos de extrema calma e paz que vinham dEle... ou então era eu mesmo - desde que me entendo por gente ouvi que Jesus é a pessoa mais legal que existe, então, nada mais do que ficar contente e lisonjeado com sua presença.

- Seja b-b-benvindo... - gaguejar foi inevitável.

Ele pediu uma toalha. Peguei uma enquanto que ele se conduzia à sala. Eu pedi desculpas pela bagunça, mas estava chegando do trabalho e não tinha tido tempo de arrumar a casa...

- Tudo bem. De qualquer forma a sua casa está bem mais arrumada do que esse mundo...

Ó vida, ó céus! Será que ele seria quele chato que algumas pessoas chatas dizem ser? Não era, a nossa conversa mudou o rumo das coisas:

Meio pra disfarçar, perguntei como ele estava. Ele disse que bem, que apenas cansado de tanta viagem.

- O caminho até aqui... kof, kof, é longo?
- Na verdade não. O meu pai está em todo lugar ao mesmo tempo, mas eu viajo todo dia e toda hora pra conversar com pessoas e saber o que elas acham da Existência. Pra maioria obviamente não me identifico.
- Devo ficar lisonjeado...?
- Talvez. Mas vim aqui pra conversar. E me informar.
- Se informar? Mas e a onisciência...?
- Sim - uma coisa é assistir tudo numa tela 3D de um bilhão de polgadas (claro que essas tecnologias primitivas são metáforas minhas), outra coisa é conversar com os atores, saber como se sentem, etc.
- Claro.
- Então, como você vai?
- Eu? Bem, acho que vou bem... Tenho trabalhado, estudado...
- Tem amado também?
- Claro. Há uma pessoa que amo muito, e outras que amo sempre.
- Você já ouviu falar que amar é muito importante, não é?
- Já. - risos - e concordo com o Senhor.
- Obrigado. Mas continue.
- Sim... acho que é isso.
- Tem se divertido?
- Â...
- Não tenha medo, pode falar - é normal que pessoas exageradas, para me agradar, escolham dizer para si que se divertir é pecado. Eu não penso assim - mas fazer o quê? Eu gosto de festas. Já providenciei até vinho numa.
- Bem, eu, sim, tenho me divertido.
- Isso também é importante.
- Acho que é isso... não sei exatamente o que o Senhor gostaria de saber...
- Diga o que você acha da Páscoa.
- Ah! Sim... Bem... O Senhor ressuscitou, as pessoas celebram...
- Sim?
- De uma forma simbólica... O senhor sabe como nós adoramos inventar rituais...
- Não estou aqui pra acusar, calma. Não precisa defender a raça humana. Na verdade sei mais ou menos que você pensa ligeiramente diferente do que fala...
- É... é o seguinte, conheço pessoas ótimas, que parecem ter uma relação com o Senhor muito boa. São pessoas que nunca ousariam fazer mal a niguém de propósito. Ousaria dizer que sou uma dessas pessoas... o senhor concorda?
- Diria que sim.
- Obrigado. Mas bem... Há pessos assim, legais... Mas há outras, e infelizmente acho que são a maioria, que são...
- Que são...?
- Elas dizem Amém Jesus num dia e no outro estão mandando pessoas como eu por exemplo, pro inferno - e mais do que isso, parece que elas desejam isso ardentemente...
- Talvez pra se sentirem melhor...
- É o que eu penso... mas isso é errado, não? O senhor... â... concorda?
- Não. Mas entendo essas pessoas. Eu existo basicamente pra isso, pra entender as pessoas. E amá-las. Me vejo em situações contraditórias. Mas graças a Deus tenho capacidades sobre-humanas pra resolver isso.
- Pois é... mas essas pessoas... são insuportáveis! Sinceramente, eu sinto nojo.
- Eu também.
- O Senhor também?
- Claro. Com quantos milhões de pessoas que cometem os mais diversos crimes possíveis e impossíveis por dia você acha que eu tenho que lidar todos os dias? Sacerdotes, ladrões, assassinos, ... todos se justificando com o meu nome. Acredite, Vinícius, você não sabe o que é nojo. Mas meu atributo, como disse, é entendê-las, torcer e ajudá-las pra que um dia tentem mudar suas existências a fim de não causar mal  ao próximo.
- Eu já tinha pensado nesse assunto. Não queria estar na sua situação, com todo respeito.
- É a vida. Alguém teria que estar. Mas não entremos nesses assuntos complicados - as conversas com meu Pai sobre isso são muito longas - eternas aliás. Fale mais sobre a Páscoa.
- Bem...acho que é isso. Da parte bonita eu gosto muito. As crianças acho que são as mais felizes na história toda. Lembro quando era criança, dos ovos de chocolate, etc. Gostava muito. Acho até uma boa ideia levar alguns ovos pros meus alunos...
- É uma boa ideia.

Houve um pequeno silêncio. E me peguei me perguntando sobre o objetivo daquela visita inesperada. Ele, como que lendo meus pensamentos, disse:

- Não posso me demorar muito mas vim pra conversar. Gosto de ouvir a opinião das pessoas sobre a vida, sobre mim. De vez em quando escolho pessoas que não estão tão presas a ideias pré-concebidas sobre a minha pessoa e a do meu pai.
- Obrigado - tenho que admitir que eu estava me sentindo...
- Minha aparência por exemplo, algumas pessoas insistem em me ver loiro de olhos azuis, mesmo teno uma ideia de que esse fenótipo europeu caucasiano não tem nada a ver com o Oriente Médio. Outras me veem como mulher, ou loiro, ou negro... pouco importa. Algumas vezes no entanto, como agora, me apresento como era uma judeu da minha época. É engraçado ver como algumas pessoas não aceitam e recusam a minha identidade... chamam a polícia, fazem um escândalo. Preciso dizer que a conexão que essas pessoas pensam ter comigo é inexistente? Mas mais uma vez, é a Vida. Da mesma forma que eu tive que aprender coisas, vocês também têm que aprender.
- Deve ser difícil ver a sua biografia tendo tantas versões publicadas... algumas dramáticas em excesso, outras quase assustadoras...
- Eu gosto do Mel Gibson, se é nele que você está pensando. A visão dele sobre certos momentos da minha vida são equivocadas, mas em geral, é uma boa pessoa. Bebe muito de vez em quando, porém um dia vai resolver isso. Aliás, o mundo vai resolver também os seus problemas.
- O senhor é naturalemente otimista...
- Não. Meu pai me diz às vezes que eu sou até realista demais. E eu não disse como o mundo ia resolver seus problemas... Só digo que vai ser de um jeito ou de outro.
- Apocalipse?
- Você não disse que não gosta de clichês? Eu também não gosto, embora pelos séculos dos séculos, inclusive entre aqueles que se sufocam e sufocam aos outros (e a mim) pra me seguir, seja isso, o clichê, que mais tem... Não, não vai ser apocalipse... mas não vou dizer nenhuma novidade se afirmar que o processo de autodestruição vocês já começaram há muito tempo. 
- Sim...
- Na verdade, é uma transformação... Da mesma maneira que pra um namorado ou namorada se diz que ele é único, não caberia dizer a vocês que já houve e haverá outros mundos antes e depois. É preferível, pra maioria de vocês, que vocês se sintam únicos e amados por um só Deus.
- Concordo...
- Bem, são sete bilhões de pessoas nesse mundo de meu deus, e todas merecem ser ouvidas. Tenho que ir. Eu sei que ainda está parecendo meio insólita essa visita mas se acostume, ela é mais comum do que você imagina - a história de mendigo ou do pobretão que aparece numa igreja rezando fervorosamente, que você recebeu no email, é piegas, mas pode ter sido verdade, hahaha.
- Bem, obrigado, é um prazer conversar com o Senhor. 
- É bom conversar com pessoas que pensam e falam. Só tome mais cuidado com o que diz. E vá com calma, algumas pessoas não estão prontas para acompanhar o seu ritmo.
- Ahn?
- As mudanças, Vinícius, elas vão vir, inevitavelmente. Não atropele pessoas pra acelerá-las demais - senão você vai ser igual aos meus filhos que me enchem o saco com suas opiniões rígidas e antiquadas. E sublinho essa palavra, antiquada, porque, como meu pai, também vivo no futuro, e até mesmo você com suas ideias, de vez em quando me parece da Idade da Pedra... Enfim. Comporte-se, viva e ame.
- Tudo bem... eu ainda vou digerir essa conversa toda e...
- Infelizemente não vai. Não seria sábio da minha parte deixar que você saísse por aí dizendo que conversou com Jesus Cristo em pessoa: ou pensariam que você é louco ou que você é um santo. Você também poderia ficar se sentindo demais. E ainda tem o risco de você querer fundar uma seita - e já chega de institucionalizações das minhas ideias.
- Então não vou lembrar de nada?
- Não. O que vai sobrar dessa conversa vão ser as ideias dela em forma de intuição. Talvez fragementos num sonho. Mas só. Acredite, é mais seguro assim.
- Posso fazer uma pergunta básica?
- Claro. Mas rápido.
- É... mas está tudo bem então comigo, contiuo assim, do jeito que sou...?
- Olha, você nã é perfeito e nunca será. Meu pai não criou vocês para serem perfeitos (um fundo musical suave poderia até tocar agora...). Quem tem que saber a melhor maneira de viverem em paz são vocês. Eu já dei conselhos. Amar é uma coisa básica. Amar com ações, eu digo, e não com palavras. O aprendizado é de vocês, e seu no caso.
- Mas e eu...
- Digamos que você em geral é um bom aluno.
- Obrigado.
- A melhor maneira de me agradar é viver a vida de vocês em paz, amor, e sem fazer mal ao próximo. Isso devia ser simples, e devia bastar - mas meu pai também criou vocês para serem complicados... talvez na próxima criação ele mude isso, porque haja paciência... mas enfim! Agora tenho que ir.

E então ele se despediu com um abraço - o perfume era como uma mistura de todos os melhores perfumes do mundo - e que eu pude sentir de uma vez, separadamente, ao mesmo tempo. Reconheci até o meu no meio.

- Até mais, Vinícius, e somente... trate de viver.
-Ok! Obrigado!
- Ah, desculpe pelo vômito no banheiro. Quando você chegou estava vomitando - estava desatualizado sobre as últimas notícias, e minha assinatura falsificada no fim da lista das coisas vergonhosas que andaram fazendo me deu um nojo que nem eu pude resistir...
- Ah, tudo bem... eu entendo...

E do nada, Ele sumiu. Foi como conversar com um amigo de infância. 

Em seguida fui limpar o banheiro.


domingo, 17 de abril de 2011

Sobre balas e doces coloridos envenenados


Família, moral, honra, Deus...

Num post anterior falei dessas palavrinhas mágicas (que na cabeça de muitos devem ter um brilho de ouro com detalhes em mármore - uma coisa assim...), e disse que se tratavam de bonbons coloridos envenenados dos quais pessoas inescrupulosas se utilizavam pra enganar ingênuos e/ou idiotas ocasionais ou crônicos.

E obviamente que repito o que disse, tomando dessa vez o cuidado de explicar que:

Família

Família não exclui os laços psicológicos e afetivos entre pessoas que não compartilham  trechos longos de DNA. É raro encontrar alguém hoje que sustente a ideia restrita de que mãe ou pai é aquele de cujo esperma ou óvulo vieram a receita pra cor do meu cabelo ou da minha pele. Como se diz, pai ou mãe é quem cria.

Além do que, creio que ninguém diria a uma criança que ela é uma pessoa deprimida e problemática, e que tem grandes probabilidades de se tornar uma viciada em drogas apenas porque foi criada pela avó ou pela tia ou pela madrinha. Da mesma forma que não poderia traçar o destino de uma criança só porque ela tem dois pais ou duas mães. Para saber dos riscos de uma criança se tornar louca ou problemática no futuro, consulte casais heterossexuais (que existem em número mais que suficiente para pesquisa) - sobretudo os pais de psicóticos, ladrões, assassinos, etc - cuja maior parte terá sido educada por... casais heterossexuais!

Não existe sociedade sem família. Um ser humano não se torna um ser humano funcional, legal, tranquilo e simpático sem uma estrutura na qual ele possa se desenvolver seguro e certo de que vai viver num mundo cheio de outras pessoas que o respeitarão e que por sua vez deverão ser respeitadas, para dar continuidade, da maneira menos dramática possível, a isso que chamamos sociedade.

Mas não existe sociedade sem mudanças. Todas as sociedades que não aceitam mudanças periódicas estruturais entram em colapso e desaparecem. Resumindo: o que está morrendo hoje não é a família; são vários outros tipos que estão surgindo - e se o objetivo da família é criar membros produtivos e felizes para uma sociedade (e não fazer pessoas como Bolsonaro e etc ficarem contentes dentro de seus uniformes militares), que venham as mudanças.



Moral...

A pessoa que mais indico para ser ouvida sobre o assunto é Nietzsche. Mas como esse nome suscita lembranças esparsas na maioria das pessoas, ou nenhuma em quase todas ("louco" ou "foda" não têm valor como apreciação filosófica), digamos apenas que moral diz respeito a como as pessoas atribuem à "natureza", ao "ser", comportamentos ou sentimentos ou emoções ou sensações que se construíram ao longo de anos ou décadas ou séculos, a partir de estruturas psicossociais impermanentes e instáveis; e claro, de como as pessoas se tornam escravas da cartilha em que figuram tais comportamentos, sentimentos, emoções e sensações, mesmo que um ou quase todos os seus mandamentos exijam a um número crescente de indivíduos, infelicidade e mal estar existencial completo e eterno.

Ou seja, moral é uma maneira de exigir dos outros que se faça algo simplesmente porque sempre se fez assim ("sempre" em geral é o "sempre" pobremente alcançado pelos conhecimentos de quem defende tal ou tal moral). Eu, pessoalmente, não aconselho que não se tenha nenhuma moral. Aconselho apenas a não nos tornarmos cretinos e algozes dos outros com o único fim defender o sentimento pessoal de bem-estar moral sem nem saber direito porque...

 Honra

Quando ouço essa palavra lembro de Rambo e dos samurais dos filmes da década de 80. Ainda não sei bem se entendo corretamente o que isso quer dizer, mas parece que é uma mistura de sentimento do ego que se defende, mais uma pitada de moral, com um pouco de bullying social light auto-inflingido... Enfim. Sei que quanto mais rígido forem os padrões de honra a que uma pessoa se submete, mais Kill Bill será a sua vida. A essa palavra meio misteriosa, eu prefiro a noção de respeito, que é  muito mais acessível à minha mente ligadinha no século XXI...

Deus

Essa é a balinha colorida mais venenosa de todas. Não preciso dizer que pessoas cínicas e estúpidas em todos os cantos do mundo e em todos os séculos se utilizaram do gosto humano por açúcar pra compelirem seus congênres humanos a se parecerem mais com hienas e lobos do que com qualquer coisa (a comparação aqui é meramente poética - hienas e lobos são seres admiráveis que se sentiriam ultrajados se soubessem a que tipo de seres humanos costumam ser comparados...). Uma guerra em que mulheres são estupradas e crianças mortas como coelhos se torna guerra santa se no fim alguém falsifique a assinatura de algum deus. Humilhação de membros da própria família se transformam em "pulso firme" se jurarem que quem disse para sermos tão firmes assim foi o próprio Deus... Violência verbal e física contra pessoas viram gestos de amor se um "em nome de Jesus" fecha a frase... Não continuo com os itens dessa lista de mal-gosto por respeito à sensibilidade dos que ainda não balançaram a cabeça lendo tudo isso. Mas não me proíbo de me surpreender, bradando: como pode ser tão fácil enganar tanta gente atribuindo a Deus ou a deuses o que homens sedentos de poder e sangue disseram há séculos milênios atrás? O fato de não nos vestirmos mais de pele de animais não quer dizer nada? Pqp!

É necessário dizer que o deus ou deuses em questão não têm nada a ver com o que fazem em nome deles? Jesus, que é uma pessoa que considero muito, ficaria chocado com o que certas pessoas fazem dizendo que foi ele quem mandou!

Dentes cariados

Bem, finalmemente, crianças, aconselho a prestarem mais atenção à sua dieta. Escovem os dentes sempre antes de dormir, prestem atenção à frase "amar ao próximo", ditas à noite em tom tão diferente de "vai se lascar viado!" de dia, por exemplo. E mais importante, não aceitem doces de estranhos... mas também não é porque aquele rosto conhecido te dá um sushi de baiacu que vcs vão aceitar sorrindo e dizendo amém... Sejam ixxxxxpertas! Beijinho, beijinho...

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Bolsonaro 2.0

Antes que Bolsonaro seja mumificado e esquecido numa tumba das pirâmides distantes e ignotas da memória curta do povo ao qual pertenço, gostaria de falar um pouco mais sobre esta pessoa.

Demonizá-lo é a coisa mais fácil do mundo, nesse momento. Ainda que um número considerável de brasileiros insista em segui-lo com a um Jesus do pântano, aliás, um jesus do lixo, uma boa parte dos seres humanos sensatos com que lido no dia a dia, é facilmente convencível de que Bolsonaro encarna um conjunto de características tais quais: o machismo, a misoginia, a homofobia, o racismo, o preconceito social, o falso moralismo, o amor pela hierarquia, etc, etc -  e que por isso é um ser humano odiável. Os que o veem como representante de uma honra e uma moral perdidas antes dos tempos apocalípticos atuais, são na verdade crianças que aceitam de um estranho balas coloridas com nomes bonitinhos como "família", "moral", "obediência", "decência". Tratam-se na verdade de drogas viciantes, que num primeiro momento enganam a sede dos retrógrados e dos cidadãos descontentes com algum aspecto da sociedade diversificada atual (liberdade sexual feminina, aquisição [a conta-gotas] de direitos civis por homossexuais, promoção da igualdade entre raças, etc); e que num segundo momento conduzem à dependência e à subordinação a um déspota ignorante, que se num dia fantástico e de terror, fosse eleito presidente, trataria de instaurar um governo tal que os mesmo que dizem que concordam com ele, rezariam pra uma bixa louca tomar o poder e acabar com as prisões, torturas e assassinatos que este senhor, em defesa das balinhas coloridas da moral, da família e da honra, poria em prática.

Pois muito bem. É um demônio? Não, é um ser humano que traz em si o histórico de sua vida. Não vou tentar fazer análises psicanalíticas, mas é óbvio que pra cada pensamento retrógrado e tradicionalista deste senhor deve haver uma explicação. Que deve interessar só às negas dele, porque me interesso mais particularmente nas consequencias das atitudes que uma pessoa dessa pode ter. Por isso me dirigirei - supondo que algum dia estas palavras serão lidas por um pró-bolsonaro - aos que não ficaram tremendo de raiva depois do vídeo da entrevista do político homofóbico e racista no programa CQC.

Antes de tudo, se olhe no espelho. Imaginem - apenas imaginem - calmamente, um calango chegando por cima do seu umbro e beijando sua nuca de forma sensual (imaginem!). 

Agora troquem na mesma cena, uma vaca. Hummmm...

E finalmente, imaginem uma pessoa do mesmo sexo. 

O que vc sentiu? Cócegas, nojo, prazer? Os fluidos fluíram nas regiões propícias? Adrenalina e outros hormônios viajaram na corrente sanguínea resultando em mudanças visíveis e invisíveis no seu corpo? Sim? Não?

Eu não quero saber a resposta. Não me interessa. Não me interessa nem a 1000 km de distância, nem a 10, nem se vc morar na casa ao lado. Que vc se excite com calangos, ou vacas, ou seres humanos do mesmo sexo, o que é que eu, na minha mera existência apressada de brasileiro que não desiste nunca, com todas as minhas contas a pagar, com toda a  minha casa pra limpar, pessoa amada pra cuidar, perguntas filosóficas e existenciais pra responder - pq eu haveria de me importar com o que vc sente ao imaginar ou mesmo por em prática esta singela experiência diante do espelho?

Pois muitas respostas são possíveis a essa pergunta que deveria ser retórica, muitas. Algumas dignas de consideração durante trinta segundos. Outras dignas de riso e outras dignas de homicídio. Vejamos algumas:

"Não é normal um homem se excitar com um calango": normal é um conceito inválido quando se quer convencer alguém de algo: não é normal uma pessoa ser muito feliz e espalhar felicidade de graça pra todos: alguém vai dizer que essa pessoa merece a morte? Normal diz respeito às normas e normas são humanos que fazem... então pulemos para:

"Deus (o mais tradicional de todos, o judaico-cristão, aquele de barba branca, do sexo masculino que os ocidentais têm na mente) não fez o homem para esse tipo de safadeza". Digamos que Deus tenha dito realmente isso. Quando ele disse? Através de quem? A resposta aproximada (partindo do princípio da validade de todos os pressupostos contidos na pergunta...) é que ele o fez há mais de três mil anos, e por meio de homens que se vivos hoje, seriam considerados representantes muito próximos dos homens das cavernas: os filmes de Holywood são sempre muito bondosos... São homens que trocavam de mulher como quem troca de celular. Que matavam a sangue frio quem não derramasse sangue de bodes ou vacas pro seu mesmo deus. Homens que dormiam com as filhas com a simples finalidade de procriar. Homens que reuniam exércitos para derrotar cidades de pessoas que nem queriam guerrear, mas que tinham como único pecado não serem... servidoras do mesmo deus! Esses homens são os que, vestidos com pele de animais, vivendo em cidades ou aldeias que nem de longe lembram o mundo em que vivemos hoje, escreveram, guiados por "deus" coisas como "não te deitarás como homem, etc"... voltando ao calango e seu beijo sensual, o que eu, na minha mera existência, etc e tal, tenho a ver com isso? A ideia é eu me vestir de pele de animais, tratar mulheres como vacas parideiras e matar um bode todo mês para agradecer a deus por ter matado meu vizinho muçulmano? Estou exagerando? Então é uma adoção seletiva das leis de três mil anos atrás? A parte que combina com ódios irracionais atuais é sagrada, mas a parte que não cai bem pode ser ignorada? Pois eis uma solução inspirada em Hollywood: cristãos fundamentalistas retrógrados, cansados da vida apocalíptica dos dias de Sodoma e Gomorra atuais, reúnam suas famílias (suas vacas, cachorros e gatos), se mudem para o pé da serra de Maranguape, e como naquele filme, a Vila, criem seu próprio mundo bíblico longe do pecado do mundo moderno - e todos seremos felizes para sempre...

Continuando:

"A biologia diz isso: o corpo masculino e o feminino se completam, etc, etc"

A barba foi feita para ser cortada? As axilas foram feitas para ser depiladas? As unhas? Pessoas com doenças cardíacas que só sobrevivem com remédios foram feitas para morrer aos 30 anos? O corpo humano vem ao mundo com um manual de instruções? Qual devemos seguir? O manual animal: que diz que mães famintas podem devorar filhos; ou que filhos famintos podem devorar os pais? Ou que a fêmea saciada sexualmente pode devorar o macho? Ou o dos golfinhos, leões, borboletas, ursos, pinguins, etc, que estabelecem relações homossexuais duradouras muito antes de Abraão pensar em escrever coisas homofóbicas?  Qual manual vamos seguir? O dos espartanos, soldados homossexuais que jogavam os filhos defeituosos fora pra conservar a beleza? Ou o dos romanos que tiveram apenas dois imperadores heterossexuais? Casais heterossexuais estéreis são obra do diabo? Toda relação sexual que não gere mais seres humanos é perversão? O manual muçulmano serve para o cearense médio? O nosso serviria para os gregos ou hindus clássicos? Um homem "completar" uma mulher sem o consentimento dela, ou "completar" uma mulher de doze anos incompletos à força é algo mais aceitável do que um homem completando outro por vontade, desejo e amor? Completar significa então: "introduzir o órgão sexual masculino no órgão sexual feminino com o objetivo de procriar, mesmo que eu nunca vá ser um bom pai, e que eu bata na mulher, e que eu me lixe pra sociedade e só pense em mim mesmo"?

Que tal um pouco de incompletude e de paz e amor?

É claro que há outras respostas à pergunta feita lá no começo. Todas não cabem aqui e nem na minha vontade de escrever. Só digo que quando seres humanos querem viver paz, eles conseguem. Esses tempos atuais são tempos de adolescência mundial humana em que vamos decidir quem somos: um imbecil preso a ideias antigas e que sempre nos atrasaram, ou adultos flexíveis, que aprendem com os erros e se abrem a novas possibilidades. Falar da humanidade como de um ser humano pode ser uma simplificação não muito operacional, mas nos dá a ideia de que os tempos de hoje são de mudança. Creio que pode ser a mudança para uma idade média nojenta onde uma maioria vai ser esmagada de alguma maneira por algum tipo de preconceito e apenas uma minoria vai viver feliz para sempre, dona da verdade e das leis; ou para um mundo mais amplo, onde todos podem decidir serem quem quiserem, contanto que não se faça mal ao próximo e cause o colapso da sociedade em que se vive.

Bolsonaro é um vândalo atirando pedras sobre o muro da civilização atual. Vândalos do lado de cá juntando-se a ele podem por o império moderno abaixo... metáfora trash. 

Ave Caesar! Ave maria! Minha nossa sinhora, que os deuses e as pessoas sensatas nos ajudem e se ajudem a não se tornarem minoria... amém. 

sábado, 2 de abril de 2011

Bolsonaro (1)

Rapaz jovial e bem vestido chega em casa no fim do dia. O espelho por que passa nos revela seus olhos de um verde marinho, cabelos pretos em contraste elegante com a pele clara. Põe na mesa sua pasta cheia de papeis: petições, processos, livros: é um jovem advogado recém aprovado na OAB, o que aconteceu só depois de duas tentativas. Sua mãe alardeia para todas as amigas que o filho é advogado, bonito, simpático, etc, como toda mãe. Só ficou triste no dia que o filho decidiu morar só, mas tudo bem, os filhos criam-se para o mundo.

O dia foi particularmente cansativo porque há um processo específico que está dando dor de cabeça. Uma ducha resolve parcialmente a questão. Em cima da mesa as contas: quase todas pagas: exceto uma, que não teve tempo de pagar porque a operadora de telefone lhe atribuiu um monte de chamadas pra Recife que nunca fez. Mais dor de cabeça. O pai dele também ligou - o que não é bom, se soubermos que seu pai é alcoólatra e sua mãe ainda sofre por isso.


Uma ligação perdida no celular nos diz que a representante da área de doações do Hospital do Câncer ligou - era o dia do rapaz que faz a coleta das doações em dinheiro passar! Bela cabeça, merda de memória! Vai ligar de volta mais tarde. Quanto ao pai... se concentra nos momentos bons da história familiar e senta diante do computador.


Nevagando meio perdidamente nas notícias, se dá com um certo nome que se repete em mais de um lugar: Meuedi. Quem é esse tal de Jairo Meuedi, essa coisa meio italiana? Uma pesquisa no Google o leva para um vídeo no youtube e o rapaz fica estarrecido com o que vê:


Um homem, um político conhecido do Rio de Janeiro, vomita, diante das câmeras em resposta a perguntas de pessoas na rua, coisas do tipo: "Tenho saudade dos tempos da ditadura, nessa época respeitava-se a moral e a família". Que absurdo! Um deputado federal nos tempos democráticos de hoje defender a ditadura! E diz ainda: "Sou contra as cotas a favor dos brancos. Eles foram escravos durante quatro séculos e mesmo que sofram preconceito ainda hoje por pessoas que de jeito nenhum são como eu, não devem receber esse tipo distorcido de compensação histórica... além do que, todos os cotistas brancos são incapacitados por natureza. Nunca entraria num avião pilotado por um cotista, nem seria operado por médico cotista". O sangue do nosso heroi ferveu; o coração acelerou os batimentos. Mas o homem no computador continuava: "Se meu filho desse os mínimos sinais de ser canhoto, ganharia um tapa na cara. Talvez uma torturazinha desse conta dessa pouca vergonha. Mas não há o mínimo risco de isso acontecer porque teve uma boa educação, exemplar aliás". E Jairo Meuedi continuava: "Se o meu filho se apaixonasse por uma mulher branca? Olha, nem vou discutir promiscuidade porque mais uma vez digo que eles foram bem criados, e etc...".


Estarrecido, o nosso rapaz revive os seguintes flashes em seu cérebro agitado:


O dia em que estava num bar com sua namorada e por causa de um beijo e um abraço, foi repreendido por um garçom mais rude, que o ameaçou expulsar do bar e agredi-lo, pois ali era um "bar de família" e ele beijar sua namorada era uma pouca vergonha.


Lembrou das milhares de vezes que na escola era chamado de "garanhãozinho", de "machinho" pelos amigos, por causa do seu jeito de andar e falar. Lembrou de como andou curvado durante anos na adolescência e de como sempre tinha a sensação de que precisava ser duas vezes melhor do que os outros em tudo o que fazia para ter o mesmo respeito dos demais colegas ou amigos, que não eram como ele, canhoto.


Lembrou dos olhares constrangidos que lhe dirigiam quando ousava fazer menção a algo, sem prévio aviso, que remetesse à sua namorada. E lembrou do dia em que foi agredido na saída de uma boate por um grupo de evangélicos com bíblias na mão: falaram da mãe dele, da vergonha que ela devia sentir, e sobre como ele iria arder no inferno, já que homens de trÊs mil anos atrás (que dormiam com as filhas porque tinham que multiplicar a espécie, e que matavam todos que não adorassem seu deus, além de trocarem de mulher se ela não fosse uma boa parideira), diziam que era pecado mortal um homem canhoto se deitar com uma mulher - abominação! Não houve sangue nessa agressão depois da boate, mas a sensação era de que por mais que tentasse ser uma pessoa boa, tudo era meio em vão, e pessoas ignorantes e preconceituosas sempre estragariam tudo, no trabalho, na escola, na faculdade, no fim de semana, e até em casa, já que tinha um primo que odiava as pessoas canhotas.


Diante do computador, então, enfurecido, desatinou-se a divulgar na internet frases e vídeos e links para amigos e inimigos sobre a importância de se unir contra Jairo Meuedi. Enviou carta à Ouvidoria da Câmara e etc, etc, etc, etc - fez muito barulho.


O movimento dava resultados. E isso lhe deu um certo alívio: sua dignidade de ser humano e de cidadão precisava daquilo.


Mas se assustou com a quantidade de pessoas de todo o país que apoiavam o tal deputado. Se assustou com o ódio que existe contra as pessoas canhotas: se perguntava o porque de as pessoas se preocuparem tanto com a meneira que vc pega num lápis ou numa caneta! Mesmo que em todos os domínio da cultura humana a capacidade de escrever com a mão direita ou esquerda tenha sido sempre importante, será que os canhotofóbicos não se lembravam de que toda a cultura ocidental foi construída sobre a base de filósofos e pensadores que escreviam com a mão esquerda? Será que as pessoas não se apercebem que se todos os canhotos do mundo desaparecessem da face da terra as artes, as ciências e a economia estariam acabadas? Qual a relação que pode existir, meus deuses, entre a meneira que se escreve e o caráter?

O fato de ele ser além de canhoto, estéril, tornava, segundo os ignorantes, sua relação com sua namorada uma abominação sem tamanho diante de deus! Ele não poderia adotar uma criança? Não! Pois a mão esquerda foi feita para trabalhos pesados, como aceitar que crianças, seres humanos em formação, ficassem aos cuidados de pais canhotos? Se tornariam com certeza pessoas desequilibradas, instáveis, sem valores... mesmo que todo mundo saiba que 99% dos assassinos, ladrões, políticos corruptos, homens-bomba, deprimidos e etc foram criados por pais destros! Como as pessoas podiam se cegar tanto diante de um ódio que não tem base racional nenhuma?

 (continua...)