domingo, 24 de abril de 2011

Conto de Páscoa

Estava eu chegando em casa, digamos, ontem. Dez vem em quando me passa pela cabeça, nesses tempos de violência e etc, de encontrar a porta aberta e as coisas fora de lugar - puro terror. Pois digam aí que foi isso que aconteceu! Meio sem pensar, passei pela porta e fui direto ao quarto. As coisas não estavam completamente bagunçadas, mas certamente havia alguém naquela casa além da minha medrosa pessoa. Mas é interessante notar que ao contrário do que deveria estar acontecendo, eu não me sentia aterrorizado, era como se estivesse sob o efeito de um calmante...

Computador ligado, livros abertos... Som de descarga no banheiro. Coração acelerado, pensei na ousadia de alguém invadir a sua casa e usar o banheiro. Esperei.

Quando a porta se abre, um homem desconhecido, nunca visto mais moreno e barbudo, perguntando por uma toalha.

Entre gritar e correr e dar-lhe um murro na cara escolhi apenas dizer:

- Quem é você?

O homem, como disse, era moreno, não muito alto, uma barba quase mal-feita. Estava vestido de roupas extremamente fora de moda - uma bata branca à la coroinha. A pele era de uma pefeição global - e não digo isso por que era límpida, na verdade havia até rugas e espinhas aqui e ali - se tratava antes de um brilho, de uma coisa... tinha feições meio árabes... judias aliás...

Pois e seu eu disser que a resposta à minha pergunta foi:

- Meu nome hebraico você não vai conseguir pronunciar, muito menos o divino - mas vocês me chamam de Jesus Cristo.

Pois pronto! O próprio, o mesmo, o Ele - chez moi, ali, aqui. Imaginem todas as palavras de espanto e comoção que vocês puderem - pois não foi isso que eu senti. Eu assenti, como se fosse um amigo meu que tivesse chegado. O absurdo de eu não estar estupefato começou a ser explicado pela impressão de que tinha alguma coisa a ver com emoções e sentimentos de extrema calma e paz que vinham dEle... ou então era eu mesmo - desde que me entendo por gente ouvi que Jesus é a pessoa mais legal que existe, então, nada mais do que ficar contente e lisonjeado com sua presença.

- Seja b-b-benvindo... - gaguejar foi inevitável.

Ele pediu uma toalha. Peguei uma enquanto que ele se conduzia à sala. Eu pedi desculpas pela bagunça, mas estava chegando do trabalho e não tinha tido tempo de arrumar a casa...

- Tudo bem. De qualquer forma a sua casa está bem mais arrumada do que esse mundo...

Ó vida, ó céus! Será que ele seria quele chato que algumas pessoas chatas dizem ser? Não era, a nossa conversa mudou o rumo das coisas:

Meio pra disfarçar, perguntei como ele estava. Ele disse que bem, que apenas cansado de tanta viagem.

- O caminho até aqui... kof, kof, é longo?
- Na verdade não. O meu pai está em todo lugar ao mesmo tempo, mas eu viajo todo dia e toda hora pra conversar com pessoas e saber o que elas acham da Existência. Pra maioria obviamente não me identifico.
- Devo ficar lisonjeado...?
- Talvez. Mas vim aqui pra conversar. E me informar.
- Se informar? Mas e a onisciência...?
- Sim - uma coisa é assistir tudo numa tela 3D de um bilhão de polgadas (claro que essas tecnologias primitivas são metáforas minhas), outra coisa é conversar com os atores, saber como se sentem, etc.
- Claro.
- Então, como você vai?
- Eu? Bem, acho que vou bem... Tenho trabalhado, estudado...
- Tem amado também?
- Claro. Há uma pessoa que amo muito, e outras que amo sempre.
- Você já ouviu falar que amar é muito importante, não é?
- Já. - risos - e concordo com o Senhor.
- Obrigado. Mas continue.
- Sim... acho que é isso.
- Tem se divertido?
- Â...
- Não tenha medo, pode falar - é normal que pessoas exageradas, para me agradar, escolham dizer para si que se divertir é pecado. Eu não penso assim - mas fazer o quê? Eu gosto de festas. Já providenciei até vinho numa.
- Bem, eu, sim, tenho me divertido.
- Isso também é importante.
- Acho que é isso... não sei exatamente o que o Senhor gostaria de saber...
- Diga o que você acha da Páscoa.
- Ah! Sim... Bem... O Senhor ressuscitou, as pessoas celebram...
- Sim?
- De uma forma simbólica... O senhor sabe como nós adoramos inventar rituais...
- Não estou aqui pra acusar, calma. Não precisa defender a raça humana. Na verdade sei mais ou menos que você pensa ligeiramente diferente do que fala...
- É... é o seguinte, conheço pessoas ótimas, que parecem ter uma relação com o Senhor muito boa. São pessoas que nunca ousariam fazer mal a niguém de propósito. Ousaria dizer que sou uma dessas pessoas... o senhor concorda?
- Diria que sim.
- Obrigado. Mas bem... Há pessos assim, legais... Mas há outras, e infelizmente acho que são a maioria, que são...
- Que são...?
- Elas dizem Amém Jesus num dia e no outro estão mandando pessoas como eu por exemplo, pro inferno - e mais do que isso, parece que elas desejam isso ardentemente...
- Talvez pra se sentirem melhor...
- É o que eu penso... mas isso é errado, não? O senhor... â... concorda?
- Não. Mas entendo essas pessoas. Eu existo basicamente pra isso, pra entender as pessoas. E amá-las. Me vejo em situações contraditórias. Mas graças a Deus tenho capacidades sobre-humanas pra resolver isso.
- Pois é... mas essas pessoas... são insuportáveis! Sinceramente, eu sinto nojo.
- Eu também.
- O Senhor também?
- Claro. Com quantos milhões de pessoas que cometem os mais diversos crimes possíveis e impossíveis por dia você acha que eu tenho que lidar todos os dias? Sacerdotes, ladrões, assassinos, ... todos se justificando com o meu nome. Acredite, Vinícius, você não sabe o que é nojo. Mas meu atributo, como disse, é entendê-las, torcer e ajudá-las pra que um dia tentem mudar suas existências a fim de não causar mal  ao próximo.
- Eu já tinha pensado nesse assunto. Não queria estar na sua situação, com todo respeito.
- É a vida. Alguém teria que estar. Mas não entremos nesses assuntos complicados - as conversas com meu Pai sobre isso são muito longas - eternas aliás. Fale mais sobre a Páscoa.
- Bem...acho que é isso. Da parte bonita eu gosto muito. As crianças acho que são as mais felizes na história toda. Lembro quando era criança, dos ovos de chocolate, etc. Gostava muito. Acho até uma boa ideia levar alguns ovos pros meus alunos...
- É uma boa ideia.

Houve um pequeno silêncio. E me peguei me perguntando sobre o objetivo daquela visita inesperada. Ele, como que lendo meus pensamentos, disse:

- Não posso me demorar muito mas vim pra conversar. Gosto de ouvir a opinião das pessoas sobre a vida, sobre mim. De vez em quando escolho pessoas que não estão tão presas a ideias pré-concebidas sobre a minha pessoa e a do meu pai.
- Obrigado - tenho que admitir que eu estava me sentindo...
- Minha aparência por exemplo, algumas pessoas insistem em me ver loiro de olhos azuis, mesmo teno uma ideia de que esse fenótipo europeu caucasiano não tem nada a ver com o Oriente Médio. Outras me veem como mulher, ou loiro, ou negro... pouco importa. Algumas vezes no entanto, como agora, me apresento como era uma judeu da minha época. É engraçado ver como algumas pessoas não aceitam e recusam a minha identidade... chamam a polícia, fazem um escândalo. Preciso dizer que a conexão que essas pessoas pensam ter comigo é inexistente? Mas mais uma vez, é a Vida. Da mesma forma que eu tive que aprender coisas, vocês também têm que aprender.
- Deve ser difícil ver a sua biografia tendo tantas versões publicadas... algumas dramáticas em excesso, outras quase assustadoras...
- Eu gosto do Mel Gibson, se é nele que você está pensando. A visão dele sobre certos momentos da minha vida são equivocadas, mas em geral, é uma boa pessoa. Bebe muito de vez em quando, porém um dia vai resolver isso. Aliás, o mundo vai resolver também os seus problemas.
- O senhor é naturalemente otimista...
- Não. Meu pai me diz às vezes que eu sou até realista demais. E eu não disse como o mundo ia resolver seus problemas... Só digo que vai ser de um jeito ou de outro.
- Apocalipse?
- Você não disse que não gosta de clichês? Eu também não gosto, embora pelos séculos dos séculos, inclusive entre aqueles que se sufocam e sufocam aos outros (e a mim) pra me seguir, seja isso, o clichê, que mais tem... Não, não vai ser apocalipse... mas não vou dizer nenhuma novidade se afirmar que o processo de autodestruição vocês já começaram há muito tempo. 
- Sim...
- Na verdade, é uma transformação... Da mesma maneira que pra um namorado ou namorada se diz que ele é único, não caberia dizer a vocês que já houve e haverá outros mundos antes e depois. É preferível, pra maioria de vocês, que vocês se sintam únicos e amados por um só Deus.
- Concordo...
- Bem, são sete bilhões de pessoas nesse mundo de meu deus, e todas merecem ser ouvidas. Tenho que ir. Eu sei que ainda está parecendo meio insólita essa visita mas se acostume, ela é mais comum do que você imagina - a história de mendigo ou do pobretão que aparece numa igreja rezando fervorosamente, que você recebeu no email, é piegas, mas pode ter sido verdade, hahaha.
- Bem, obrigado, é um prazer conversar com o Senhor. 
- É bom conversar com pessoas que pensam e falam. Só tome mais cuidado com o que diz. E vá com calma, algumas pessoas não estão prontas para acompanhar o seu ritmo.
- Ahn?
- As mudanças, Vinícius, elas vão vir, inevitavelmente. Não atropele pessoas pra acelerá-las demais - senão você vai ser igual aos meus filhos que me enchem o saco com suas opiniões rígidas e antiquadas. E sublinho essa palavra, antiquada, porque, como meu pai, também vivo no futuro, e até mesmo você com suas ideias, de vez em quando me parece da Idade da Pedra... Enfim. Comporte-se, viva e ame.
- Tudo bem... eu ainda vou digerir essa conversa toda e...
- Infelizemente não vai. Não seria sábio da minha parte deixar que você saísse por aí dizendo que conversou com Jesus Cristo em pessoa: ou pensariam que você é louco ou que você é um santo. Você também poderia ficar se sentindo demais. E ainda tem o risco de você querer fundar uma seita - e já chega de institucionalizações das minhas ideias.
- Então não vou lembrar de nada?
- Não. O que vai sobrar dessa conversa vão ser as ideias dela em forma de intuição. Talvez fragementos num sonho. Mas só. Acredite, é mais seguro assim.
- Posso fazer uma pergunta básica?
- Claro. Mas rápido.
- É... mas está tudo bem então comigo, contiuo assim, do jeito que sou...?
- Olha, você nã é perfeito e nunca será. Meu pai não criou vocês para serem perfeitos (um fundo musical suave poderia até tocar agora...). Quem tem que saber a melhor maneira de viverem em paz são vocês. Eu já dei conselhos. Amar é uma coisa básica. Amar com ações, eu digo, e não com palavras. O aprendizado é de vocês, e seu no caso.
- Mas e eu...
- Digamos que você em geral é um bom aluno.
- Obrigado.
- A melhor maneira de me agradar é viver a vida de vocês em paz, amor, e sem fazer mal ao próximo. Isso devia ser simples, e devia bastar - mas meu pai também criou vocês para serem complicados... talvez na próxima criação ele mude isso, porque haja paciência... mas enfim! Agora tenho que ir.

E então ele se despediu com um abraço - o perfume era como uma mistura de todos os melhores perfumes do mundo - e que eu pude sentir de uma vez, separadamente, ao mesmo tempo. Reconheci até o meu no meio.

- Até mais, Vinícius, e somente... trate de viver.
-Ok! Obrigado!
- Ah, desculpe pelo vômito no banheiro. Quando você chegou estava vomitando - estava desatualizado sobre as últimas notícias, e minha assinatura falsificada no fim da lista das coisas vergonhosas que andaram fazendo me deu um nojo que nem eu pude resistir...
- Ah, tudo bem... eu entendo...

E do nada, Ele sumiu. Foi como conversar com um amigo de infância. 

Em seguida fui limpar o banheiro.


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