terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Um pote de barro

Eu não sei.

Porém este meu não-saber é pleno, cheio de coisas: de saber muito, por exemplo, de saber qualquer coisa, ainda mais. Não quero dizer “nada sei”, pois se quisesse dizer di-lo-ia da maneira mais simples e calma: nada sei. A pura contradição imediata no entanto é que se já se sabe que nada se sabe, sabe-se alguma coisa então sim, e já não é mais um nada isso. Logo, uso “não sei”, que é um arco incansável de flechas inúmeras apontadas pra todo lado.

O fim disto? No lo sé – pra que não soe sempre igual. No lo sé porque nem o começo alcanço e fico mesmo é no meio – no meio presente, no meio ambiente, no meio entender, me esticando, me retorcendo e contorcendo, em busca de elasticidade, flexibilidade, ductibilidade também: rigidez não dá, o galho teso é o primeiro que quebra com o peso. Quero poder dobrar-me o pensamento naturalmente sem dor e ter a resistência impossível da fibra sintética mais nova.

E o que pesa? Tudo o que é pesa, meu Deus, até o sol pesa na cabeça. O tempo, o espaço, a vida, a morte, o riso, o choro, o problema, o emblema, a dor, o prazer, o desejo, o querer, o ter, até o ser pesa, pesa, pesa... Nem Heracles, Atlas, Einstein, Maturana, loucos e congêneres chegam pra tanto esforço. O único jeito é deslizar, fluir, deixar – a água deixa, a água flui, a água tanto bate que até fura...

Parece que estou dizendo água? Pois então é porque és pedra, e eu tanto vou bater que... Ou não – vou é ficar aqui quieto, me contorcendo pra ver se tomo a posição tranqüila do ser dessa cadeira, que é em paz, desse vaso com plantas, vermelho úmido e perfumado do barro, dessa janela aberta, grande olho vazado da minha casa no perímetro final urbano à noite.

Pois é noite. Não poderia ser de outra forma já que no Japão uma menina diz sim a seu menino-amor de olhos puxados e enternecidos no portão da escola ao sol de verão. Na China outra menina é atirada pelo não da mãe no rio – porque quem cuidará dos pais velhos no dia de amanhã?

É noite aqui e eu queria também uns olhos puxados e enternecidos pra mim. No entanto só tenho sacrificado filhas-meninas de tanto pensar cínica e cegamente no meu futuro. Taí mais um algo que pesa: o futuro. Pesa tanto que de tanto fitá-lo sou capaz de matar a menina do olho e ficar cego, tateando no presente estado de coisas, perdido e sem rota.

Já olhei nos olhos do abismo – e sim, este me olhou de volta; já desci de escafandro até o fundo do mar pra ver de perto o raro caranguejo branco circulando o vulcão que aquece o escuro eterno, e lhe dá vida exótica. Olhei nos olhos do bicho, que era cego de tanto não ver e vi ali que: também muito não vejo, um ror de coisas me escapa – qual o próprio aracnídeo, que me escapava semanas atrás: e ainda assim ele existia, sem eu saber! - e entendi que mesmo o sol e o pensar são um pequeno vulcão triste, ilha de vida no meio do breu eterno...

Nessa minha janela tem uma estrela. Que a nuvem cobriu. Eu espero. E um morcego voa. E uma buzina. Talvez uma chacina... Longe. Eu espero.

Se morresse agora queria que me mumificassem – pra saberem como era um plebeu desse século último: perenemente à espera e cheio de problemas nas transmissões entre os neurônios. Os sábios de daqui a cinco mil anos, meus descobridores, saberiam do que se tratava? Entenderiam meu cigarro, meu remédio e minha expressão? Identificariam as carências de hormônios de alegria e de prazer ou o excesso dos outros, e leriam a vaidade da minha vida na fala muda dos meus objetos? Ou diriam apenas: “Não chegou a ser tudo o que era, mas este outro objeto – a cadeira – sim”?

Olhe que quando se trata de viajar, esse mundo apenas não me basta. Eu saio mesmo, vou-me. O único risco aqui é não voltar. Antes esse risco que o de vida que se corre lá fora de casa – de onde o próprio ir pode-se perder sem volta, por um relógio, por um não, por um talvez. O não-retorno é um medo e Clarice pensava às vezes que não voltava completamente. Seria como dormir e acordar ao mesmo tempo. Um perigo. Mas deixe, teço um fio de Ariadne, uma linha telefônica direta com o prático: alô, a conta?, ah, o dinheiro, é preciso, o preço do viver, o custo da vida, eu sei, eu sei e... puff!,  caí da nuvem, voltei.

O feijão aumentou muito de preço essa semana. Porque a soja colhida por máquinas dava mais dinheiro, e agora parece que é a cana de novo, pois o petróleo suja demais e queremos viver pelo menos mais um século, pra ver se dá tempo de sair do planeta ao menos. Recomeçar, reinventar, repetir... A árvore do conhecimento cresceria em solo marciano? Seu fruto será a vida eterna e o conhecimento? Sinceramente, eu duvido muito, vide Terra: aqui deu no que deu, e a gente se pudesse, voltaria atrás? Ai, meu Deus, pra que tanto arbítrio?

Na verdade o que eu queria era escrever um texto que se pudesse ler em qualquer contexto, ou seja, uma coisa que uma pessoa, um ET ou um anjo, ou seja lá o que fosse pudesse ler sem percalços e demasiadas dúvidas. Mas isso é impossível, eu sei, ao menos com palavras. Palavras são moedas e os dinheiros, as cobiças e os preços mudam rapidamente... [E números também são palavras, viu, essa história de que matemática é universal não procede – o número é a palavra de uma língua – e a língua é coisa nossa, humana...]

Ser entendido através dos tempos exigiria talvez a singeleza e subobjetividade de um objeto: teria que dar uma de artista plástico, é: manejar o bruto da matéria, o subjetivo do palpável e lançá-lo no espaço tangível para que as objetividades gerais o captassem como coisa mediata. Por exemplo, como traduziria o texto que é esta crônica com a palavra-bloco-texto da pura língua objetal?

Simples: um vaso. Aliás, um vaso não: um pote. Um pote de barro vazio, como o da minha avó, que era cheio de uma água doce, às vezes da chuva, e deixado num canto de penumbra. A água absorvia essa penumbra, e um frescor triste mas bom tomava conta de quem tomava da água fria. E o pote nunca secava, juro! Perguntava à avó quem o enchia (pois nunca vira ninguém enchê-lo) e ela dizia que ninguém, sorrindo enrugada.

Pois se tivesse que deixar um testamento-recado para a posteridade inominável, este seria um pote vazio – se bem que é sempre bom lembrar que um pote, e um copo, vazio está cheio de ar... Pois seria a minha cara, a minha máscara, a minha metáfora para os seres desse futuro por quem mato meninas no rio das preocupações.

Aí em seguida a nova pergunta existencial desses seres seria sobre o que ali faltava, o que no artefato anacrônico caberia: água, jóia, loucura, sangue, terra, excremento, excentricidade, ossos, carne...? Grandes concílios se fariam entre os sábios para decidirem que segredo guardava o objeto deixado como relíquia pelo habitante do mundo que morreu...

E aí talvez já próximos à desistência diante de tal árido mistério intelectual, um sábio mais dado a filosofices chegasse, e finalmente, com coragem, jogasse uma indagação perturbadora mais ou menos como essa: “E quem disse que deve faltar alguma coisa a esse objeto? Não vêem, como eu vejo, que o recado é justamente esse: que no vazio assinalado cabe tudo o que nele não há? E que sua infinitude está justamente no todo das suas possibilidades... e que essas possibilidades são mais nossas que as de quem fabricou...?”

E ainda assim o pote não teria dito uma palavra, cheio de penumbra e silêncio...

Um comentário:

  1. Nossa! Quanta coisa te inquieta: a busca do conhecimento, o futuro, a morte, até o preço do feijão. Mas o que mais me tocou nesse texto foi quando você mencionou sobre sua vó, isso me fez voltar a minha infância com a minha vó na casa dela... num interior vivo na minha mente... no meio do mato. Que saudades!!!
    Obrigado por me fazer lembrar aquilo que eu nunca deveria ter esquecido.

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