terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Grécia e galinhas sem cabeça

Um garoto compra uma cafeteira de presente para o pai, mas o produto não funciona. Frustrado, o menino vai até a loja para tentar devolver ou trocar o cacareco. Mas em plena crise financeira de 2008, o gerente se recusa a realizar a devolução, já que isso envolveria decisões complexíssimas que têm a ver com o estado da crise mundial de então (e de agora), e por conseguinte, sugere ao menino que procure seu superior, o gerente regional da rede de lojas. Este por sua vez diz que não tem autoridade para decidir sobre a devolução e envia o menino ao seu superior, e assim sucessivamente, até que o rapaz se vê, no fim de uma longa jornada, nada mais nada menos diante de uma porta atrás da qual se encontram ocultamente os mestres magnânimos do sistema financeiro responsáveis pelo destino da economia mundial. Emocionado, ele acha que finalmente encontroará a solução para o seu problema... Então ele entra na sala e percebe que interrompeu uma importantíssima reunião: homens com capas pretas, com ares de lords Sith ou Bispos de um igreja do Mal (especuladores financeiros), em volta de uma mesa, estão exatamente no momento da consulta para saber que rumos o mercado financeiro (incrível como essa palavra me lembra o Gasparzinho ou o Geleia...) deve tomar... Boquiaberto o rapaz assiste ao ritual que decide os destinos de países e pessoas de todo o planeta: os magos especuladores cortam a cabeça de uma galinha carcarejante, que depois de uma dança mortal, cai sobre um quadrado aleatório desenhado no chão, como numa roleta de cassino, no qual está escrito um dos rumos possíveis do mercado: humor pessimista...

Ok, vamos todos rir: afinal, a imagem é exagerada, extraída de um desenho animado que é conhecido por satirizar tudo e todos de maneira hiperbolicamente ridicularizante...

Mas... A coisa não é bem assim. Jornalistas independentes, documentários, apóstatas do credo mercantilista financeiro, dizem que se substituirmos a galinha sem cabeça pela dor de cabeça de um especulador ambicioso sofrendo de gases - por exemplo - , teremos exatamente algo próximo ao que uma câmera de vigilância registraria de qualquer reunião desses gurus do mal do mercado, que vivem de brincar com expectativas de liquidação de dívidas criadas do nada e que sequestram pessoas e outros grupos que nem sabem direito o que estão fazendo...

Não seria capaz de explicar exatamente como funcionam as coisas nesse nosso mundo de múltiplos sistemas interdependentes, em que o quanto se planta e quanto se colhe, quanto se investe na educação e na saúde, depende do humor ou da cobiça de pessoas que em vez de pratos vazios ou garrafas de champagne e porções de caviar, vêem números, equações, índices subindo e descendo... E essas não são reles palavras minhas ou de um dos indignados dos Occupy da vida: há uma semana ouvi uma entrevista com um negociante da bolsa de Nova York, e a um repórter suíço, em bom inglês de pós-adolescente, ele disse que depois de alguns anos de trabalho frenético entre tantos números, ele se sentia um pouco como em Las Vegas ou diante de um jogo de vídeo game: ali não era a negociação das dívidas de países inteiros que desciam a ladeira o que ele via; o que ele via era um desfile de cifras, de sinais de positivo e negativo se alternando, sendo que às vezes os sinais de negativo traziam mais dinheiro pra ele e pros seus colegas, e por isso o sorriso na voz. A palavra África pra ele, lembraria talvez, no máximo, Obama... e Grécia, talvez, o bronzeado do último verão.

Seres humanos são inteligentes e criativos, isso é um fato. Temos o dom de transformar tudo em arte: lixo, sexo, a sede por deuses, o amor, até o ódio. E na cabeça dos especuladores, números. Alguns deles falarão da poesia dos números, da elegância do vai e vem, da adrenalina da incerteza... Matemáticos, outros amantes dos números usariam as mesmas palavras. A diferença é que os números dos matemáticos são espuma teórica que no fim das contas vai ter alguma função na vida dos pobres mortais, enquanto que os números dos primeiros só têm valor na medida em que signifiquem mais e mais dígitos nas suas contas bancárias. E esse dinheiro não surge do nada: o dinheiro do bolso dos especuladores é dinheiro que direta e/ou indiretamente vem de governos, isto é, do seu, do meu, do nosso bolso, aleluia senhor!

Os pais da economia moderna não imaginavam a esquizofrenia perversa em que o capitalismo mergulharia o mundo inteiro; acho que nem eles, Smith, Mill e Cia imaginavam que seu malicioso sistema de transformar tempo em dinheiro (juros) iria dar à luz monstros de ambição e vento que sugariam países até o último tostão, cobrando por dívidas criadas a partir literalmente do vazio, do zero, do nada.

O mercado financeiro se tornou algo como uma religião, onde apenas seus crentes fanáticos ousam defender o dogmatismo dos números diante de algo como milhões de seres humanos perdendo tudo o que tem e outros não tendo mais o que comer. Belos macacos inteligentes que nos tornamos hein, escravizando uma maioria em nome de títulos de dívida, de números áureos brandidos por credores impiedosos, por governantes gananciosos que viraram prostitutas de banqueiros...

Podremente citando: “Este é o nosso mundo, o que é demais nunca é o bastante...”. Pois muito bem. E ainda tem-se que ter a paciência de ler uma notícia num jornal como Folha de Papel Higiênico de São Paulo sobre os movimentos de pessoas indignadas com a inconstância e cupidez dos especuladores, que decidem protestar pacificamente contra esse sistema nonsense... os comentários dos leitores de ultradireita do jornal se resumem a louvar o sistema capitalista e sugerir que eles (os indignados desempregados) façam o que todos nós (brasileiros, espanhois, italianos, gregos, franceses, alemães...) temos feito desde que nos entendemos por gente: trabalhar, trabalhar, trabalhar mais, como se essa fosse a solução. Como se essa crise fosse fruto de um mero erro cometido por uma ou duas pessoas ao longo do percurso do mundo unido rumo à riqueza e à prosperidade...

Non: o sistema atual por definição exige que haja devedores e eternos perdedores. O capitalismo como nasceu há quinhentos anos e se aprimorou durante e depois a revolução industrial precisa de carne humana pra ser moída e transformada em piscinas, jatinhos e champagne, seja para americanos, europeus ou chineses. Essa é a lógica. Nós, das ex-colônias de exploração, nutrimos durante séculos o bem estar europeu e americano; e nós, ao tentarmos nos oferecer a nós mesmo um mínimo desse mesmo bem estar, deixamos os parasitas metropolitanos órfãos de hospedeiros, e eis que eles se vêem obrigados a se devorarem, num canibalismo impiedoso. Ok, muito dramática a imagem, mas voilà... quando o último osso grego, portuguÊs ou mais tarde e inevitavelmente francês e alemão estiver sendo chupado e roído, haverá duas soluções: ou uma guerra suja como a que os EUA estão querendo cavar contra o Irã; ou um pouco de vergonha na cara seguida por tentativas legítimas de tentar criar um mundo mais igualitário e que faça jus àquilo que insistimos em atribuir a nós mesmo como característica diferenciadora dos demais animais: razão.

Enquanto isso, ocupar Wall Street é o mínimo, dizer o que se pensa é básico, agir nem que seja assinando uma petição é imperativo. Espero do fundo do meu coração esperançoso que nosso mundo de Facebook, praia no fim de semana e vontade de crescer quieto no trabalho pra tentar ser feliz não tenha que desmoronar por completo pra gente perceber o risco que estamos correndo deixando que gente corrupta e sem o mínimo de escrúpulos decida o rumo das nossas periclitantes existências.

Falou o leigo.

E este leigo, diga-se de passagem, não acredita que o comunismo/socialismo seja a alternativa salvadora ao capitalismo.

Uma coisa nova tem que surgir, qualquer coisa.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Não


Foi tão ampla a mesa
Que meu corpo não se coube
Identifiquei países em manchas,
Amor em borbulhas, tempestades em copos.

Na cerveja caiu uma estrela
Pediu-se um desejo na borda.
Mas o mapa era infinito...
O caminho esbarrou no meio vazio
Do copo alheio...