sábado, 24 de março de 2012

A Meta (2)

(...) O trabalho no jornal não o cansava tanto quanto as caras que via e tinha que ver. Na frente de uma e outra algumas vezes dissera insensatamente mais do que deveria ter dito e fora devidamente punido. A meta talvez tivesse a ver com isso, com finalmente largar o jornal e abrir a gráfica. Mas os dias sempre amanheciam com demasiada luz, e à beira-mar, suspirava...

Seus amigos, poucos na verdade, o tinham em alta conta como bom cantor e ótimo anfitrião. Algumas noites por semana, a piscina ondulando em azul sob as luzes do jardim, se reuniam em prol de nada mais que de si mesmos. Adriano e Márcia sempre estavam lá, os demais eram rotativos. Adriano “... o imperador, construiu uma cidade e deu-a de presente para Antínoo como prova do seu amor” dizia no dicionário, sonhando,  para amargamente concluir: “desse Adriano eu ganhei um isqueiro mês passado...”. Márcia “tem os cabelos mais lindos desse planeta, os olhos mais suaves e tristes e uma imprecisão nos gestos que encanta e causa riso. Se eu fosse mulher, queria ser o contrário dela. Mas eu a amo”.

Conversavam sobre livros, filmes, pessoas e coisas. Volutas não faltavam. Quando achavam por bem que houvesse o vinho, as alegrias se hipertrofiavam e as palavras soltas se multiplicavam. “Existência”, “dor” e “amor” não faltavam - pois isso foi há quinze anos, quando ainda havia muita esperança. Adriano às vezes tocava o violão e Ele cantava... por falar nisso, assim se definia Ele no Dicionário: “Sou Ele: desse jeito, simples. Meu nome não diz nada de mim – talvez diga de meu pai, ou da minha mãe, que foi quem o escolheu, mas de mim, nada. Palavras, brutamente falando, são sopros articulados. Como esperar que alguma verdade haja em vento que sai da boca e do nariz? Conheci um rapaz louro que se chamava Eduardo – um nome cujo som arde em chamas de poder e paixão na minha alma, um rapaz lindo... Mas nada havia de Eduardo em Eduardo. Talvez José, ou Nero, ou Lúcifer. (...) Já entrevistei um anão, que sustentava três filhos rolando no chão da praça no meio do povo, e que se chamava Julius César de Jesus (...) Meu nome é como o de Deus - é só pra dizer que eu sou - : um mero vocativo...”


Nessas noites de alegria Ele cantava as coisas que ouviam. Sua voz era grave e de uma potência inesperada. Uma vez, provavelmente já perto do sol nascer, falara de um cantor indiano, o qual aprendera a traduzir em música pura o trinado de pássaros, o coaxar de sapos e o grunhido de macacos. Segundo Ele, tais músicas, além de revelarem um talento muito mais que artístico, místico, tinham apelo hipnótico e quando reproduzidas levavam o público ao êxtase – geralmente formado por pessoas da área da música de vanguarda, artistas, intelectuais. “E mais, Ramadranath não apenas traduz o som desses animais em música, mas em letras...”

No meio dos risos que causou, Ele também riu, insistindo porém que falava a verdade, e que tinha, como prova, algumas das canções do cantor e intérprete indiano guardadas num disco. “Os nomes das canções são tipo ‘Clamor de meus filhos’, ‘Onde está o meu nenúfar?’, ‘Banana sapiens’, ‘A rã que ri no rio dos homens’... Se o Adriano for comigo até à sala procurar o disco...”

Márcia nesse instante baixou os olhos mas Ele não viu.

Antes de levantar e entrar em casa acompanhado do amigo, o vermelho de uma cinza se apagando no cinzeiro sobre a mesa de palha por um instante lhe entristeceu pateticamente...

Havia na parede da sala um quadro onde uma jangada encalhava na areia e um pescador de rosto oculto na sombra do chapéu dobrava a rede. Numa mesa três vasos em silêncio de barro se abriam rubros. Sentados no tapete – em cujos fios dois chineses do campo alimentavam duas eternas aves - Ele espalhou discos e palavras nuas, finalmente claras para que o outro ouvisse...

Mas no silêncio de Adriano as canções nunca foram achadas, nem caminho ou rua alguma foi aberto, muito menos uma cidade...



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