terça-feira, 20 de março de 2012

A Meta

Parte 1


A meta

“Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor”
Fragmentos de um evangelho apócrifo, 50,
Jorge Luis Borges



Houve um dia em que abriu os olhos. Supôs um caminho, uma meta qualquer. A dúvida porém sempre vinha. Espantava-a como a uma mosca, mas como mosca o “e se...” agourento revolteava e não se ia.

Prestou atenção na fumaça sendo tragada pelo vento que circulava da janela. Não deixava de ter sua beleza. “Maldito seja quem inventou o cigarro”, pensou. “Bendito seja...”, tinha dito no dia anterior, quando, no prosseguimento de seu “Dicionário das Coisas”, tinha escrito assim:

“Cigarro: coisa freudianamente masculina, símbolo da fraqueza, do glamour, da vontade de esquecimento. Mais uma das materializações do desejo humano que, como tudo que humano é, traz consigo tanto a morte como a vida. (...) O cigarro foi feito para ser fruído, e por tabela, malignamente nos fruir... Cigarro é comungar com o mundo por via desse ritmo existencial, antiqüíssimo, semi-divino, o da respiração. Fumar é pulsar no mundo de uma certa maneira. Nociva que seja... E encerra mistérios tais... Até hoje não há teoria científica que explique a vontade e a incerteza hipnótica das volutas azuladas que saem dos pulmões a evoluir as moléculas do fumo, do fumante e outras mais no vento. Volutas são nuvens de dentro. Seu destino tão desconhecido como o de quem as suspira, nervoso ou calmo. Considerando que a única certeza de que dispõe um mero ser humano é a morte, fumar é compartilhar com o Todo a essência de Tudo: misto indelével e angustiante de certeza e incerteza. Cigarro é portanto a certeza de morrer – da perspectiva individual, pequena, pouca - , e, a um só tempo, a incerteza do porvir – do Derredor, do Grande, do Tudo. Marilyn Monroe...”

E assim por diante. O Dicionário era uma tentativa de esquecer e lembrar ao mesmo tempo. Um passatempo. Algo como para fixar-se no papel, antes que, como as volutas, fosse tragado pelo vento e sumisse de vez.

Quanto à meta, provavelmente na próxima hora a esqueceria. Supria-o o sol daquela manhã e a vaga lembrança das flores do jardim. Cultivava-o como terapia. Cães e gatos estavam além de sua capacidade de cuidado e apego. Já as plantas são vivas, bonitas, simples e verdes. Que elas sugassem sua vida do ar, da terra e do sol lhe parecia uma magia quase assustadora, e que por isso, merecia uma certa adoração. Regava as plantas invejando-as. Nunca tentou falar com elas, era muito cético. Mas o balançar de uma folha lhe dizia tanta coisa que um dia chorou sem saber porque, tímido. Lembrava-se também de uma vez que um besouro parecido com uma abelha se deitara no néctar de uma pequena flor rosa, e de como houvera êxtase no movimento de suas patas e antenas. Na terceira semana se surpreendeu com a tessitura que uma aranha fina e astuta lograva no meio do verde e da sombra. No fim do mesmo dia um inseto jazia em conserva, como uma múmia, na teia. No centro, longe, a aranha gozava do momento.

No Dicionário figurava assim o verbete jardim: “É a paragem onde transmorfias maravilhosas acontecem no silêncio mais absurdo que pode existir: o da vida que se faz. Orquestras deveriam soar, trombetas estrondosas deveriam gritar, ou pelo menos uma flauta e um oboé deveriam acompanhar cada desabrochar de flor e luzir de folha. Alquimistas, magos, cientistas olham pro tronco que se ergue, pro sol que se deita na folha, pras cores que vemos e que não vemos, com mágoa – a de não poder, a de ter que se contentar com o mistério, sem talvez nunca achar sua luz. Quando a chuva em gota escorre na poeira seca de uma folha verde vivo fica mais fácil acreditar em Deus”.

Quanto a abrir os olhos, fechava-os com freqüência. Tinha hipersensibilidade à luz e pensava mesmo que com o tempo deixaria de sair de casa antes que apenas a lua brilhasse no céu. Uma vida de vampiro até que lhe agradaria - desse ser, que segundo ele “une o melhor da morte e da vida. Deseja ardentemente, tanto é que só o corpo não basta, tem de ter o sangue. A crer nas novelas escritas ultimamente, são belos, inteligentes, galantemente cruéis. Voar, viver séculos, ter tempo e sangue para acumular a sabedoria do tempo de viver e de morrer: só a fantasia poderia criar uma coisa tão boa...”.

(...) 

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