domingo, 1 de abril de 2012

A mesma língua

A mesma língua


     Queimou-me o café a língua, pensou, feliz sobre a dor esquecida pelo deslizar articulado da frase.

     Queimei a língua, pensava sua boca, cálido vão de vermelho oculto que se mostrava nas palavras sopradas gratuitas sobre a mesa.

     Esta era um círculo de conversas dentro de outro círculo de conversas, pedidos e ordens.

     Ele com a língua ardente. Sentiu-a como se se desmanchasse um pouco. Certificou-se dessa ilusão contraindo o músculo em auto-análise e depois comunicando a todos que: queimara a língua.

     Um silêncio de diálogos não interrompidos e uma gargalhada estrangeira e inconsciente de queimaduras vieram numa resposta mural que ele, depois de um instante de espanto desprezado, viu finalmente que era rica de permissões e concessões. Que se alegrasse pois, dessa concessão de fazer e estar: estava só, mudo, ignorado por enquanto, livre para fazer-se em pira todo o seu ser a partir de sua boca, se quisesse.

     Pois muito bem, engoliu com uma saliva mais quente com gosto de café a sua liberdade dentro do círculo e ordenou sucinto à sua boca que comesse. Ela, que nem era dessas coisas de devorar ávida o mundo, obedeceu, e demais, como ele queria de fato, e o fez como se boca de selvagem felino fosse e não de primata doméstico, e visse no pão com queijo e presunto um pescoço liso e suculento de gazela.

     Mastigou plenamente diante de uma câmera, muito intrusa, ali escondida, e mal, a supervisionar a segurança do repasto geral.

     Mastigou como uma vaca automática. Se um de seus amigos porventura descesse de suas gargalhadas e o mirasse com súbita esperança, certamente se surpreenderia sem saber se ele era como todos e engolia de vez em quando o bolo da boca ou se tudo era uma só mastigação ininterrupta e que sua boca era bruta e só enviava tudo ao estômago de uma vez, não em prestações.

     De fato, uma vez se dignara a contar, e sua mandíbula, soube, triturava o alimento quarenta vezes antes de dispensar a sofrida comida esbagaçada a seu destino de dissolução e transmorfia.

     Às vezes cansava de mastigar. Ficava exausto. Mas como gozasse da liberdade de não existir naqueles instantes de alheamento do grupo, com apenas metade do número assinalado, deixou que dum escuro quente ao outro, ácido, deslizasse o que havia sido parte de um singelo pão com queijo e presunto, e de uma gazela africana.

     Viu-se então esvaziado de sentido, terminado o processo de mastigação sem cansaço. Com nojo, pensou mesmo em camelos e vacas, e cogitou em que se pudesse, convocaria o ido conteúdo a outras vinte vergastadas. Confundiu-o um pouco a dúvida sobre a capacidade de ruminar do camelo...

     Mas, sim, esvaziado ficou, porém não tanto tempo. Apalpou a boca com a língua, e enquanto buscava não se sabe o que nos vãos e desvãos de dentro com o visco do músculo, ao mesmo tempo os olhos respondiam com uma busca externa isenta de fins, a circular pelo recinto híbrido de fast food e comida lerda.

     Tranqüilo momento de mundo a se passar se passou. Seus amigos voando nas palavras, araras, flamingos matraqueando sobre um verde e alegre lago, ele o hipopótamo feito em sapo, e em nenúfar, e em mosquito, e em brisa, e em águas boas...

     E então houve um cachorro.

     No ir e vir das gentes e gentinhas e vozes e vozezinhas e cheiros de carboidratos diversos, vinha e ia o cachorro.

     Ele lá dentro, seu rosto de símio perdido e medroso, com uma busca sem fim de uma língua queimada, entre os arbustos de ombros e cabeças dos amigos a mirar.

     Ele lá fora, a língua de fora, fora sua cachorrice expressa no trote quase eqüino, uma longa cor de marfim, uma atitude cristã de procissão apressada sem deus ou santo à frente, a noite amarelada do poste a circundar-lhe a existência. Era um cachorro extremamente completo, notou.

     Porém numa imagem incompleta. Pois não tinha ares de mendigo canídeo, opunha mesmo à sua posição humilde na arrogante escala da evolução dos seres animados uma arrogância tal que, em sinal de mútuo respeito e aprovação, riram um ao outro, contentes sobre os dentes: é, é assim mesmo.

     Mas parecia mais uma arrogância de cão de dono rico, pensou, decepcionando-se.

     Todavia sem dono ia o cão. Lindamente sem dono e sem cego. E a isso devia-se a incompletude, como percebeu em sua apreciação, nem sonhando com a mosca preta encarada pelo olho preto e curioso da câmera, pousada no queijo e sua ponta desfalecida na massa do pão: era um cão que, em seu perfeito marchar de cão de dono rico, parecia que era conduzido por alguém, ou a alguém conduzisse: um dono ou um cego invisível.

     Em seguida refletiu sobre a limpeza do cachorro orgulhoso e da sujeira do centro da cidade. Mais uma falta no cão: a sujeira. Outra ainda: o abandono. Assim era um cão sem cego e sem dono e sem afinidade com as ruas do centro. De certo, pois, era um ser de outros ecossistemas, outros lugares, talvez de outro planeta. Fugitivo, desertor, invasor, quem sabe. Muito senhor de si, esse cão, refletiu. E mais uma vez riu, supondo a metáfora de um mundo de cães senhores de metrópoles sujas com homens a ladrar e a serem coletados em carrocinhas.

     Quis aprofundar-se no mistério do cachorro indevido a desfilar limpo na calçada imprópria – e vejam, tantos pães e guloseimas nas vitrines e ele nem olhava! – mas uma voz ordenou adoçante...

     Sua atenção vacilou e num espaço de um flash o cachorro inexistiu, o que o irritou. Mas o trato que vinha de desde antes da língua chamuscada do café, e da verborragia dos amigos era de que ele talvez não existisse ali (ele que de fato nos últimos tempos realmente não tinha estado ali no círculo), e com uma cara de máscara abobalhada disse, sem abrir a boca, com indizível abuso, que não incomodasse sua ausência na mesa com um pedido de adoçante, ora – que respeitasse as leis, e que além do mais havia o cachorro e seu enigma.

     O adoçante jazia à sombra dos guardanapos, como observava o canto do olho desprendido da atenção ao cão.

     A seguir, quando toda a atenção reuniu seus pedaços e tentou recompor o olho e olhar, não houve mais cão: ido, sumido, talvez nem havido.

     Só o casal de idosos a comerem hambúrgueres de carne de bode – os animais moídos e formatados dentro de duas fatias de pão se exibiam deliciosos num enorme cartaz promocional – ofereceu-se à sua atenção abandonada pelo cachorro. No entanto a mosca ainda preta instou-o ao retorno e por ela chegou à mesa, sem interesse algum, como alguém que chega ao ponto de ônibus e o transporte também chega cronometrado, inglório, uma dádiva idiota, pela qual ele nem agradece.

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