terça-feira, 28 de agosto de 2012

O Jardim

O jardim


Sou como todo mundo, quando nasci não sabia o que era. No início do começo, minha existência se constituía de um ponto de vida. Vida ínfima. Sem saber de mim o meu derredor todo é que se fazia, a flutuar eu no limiar do pensamento. Tudo escuro, morno, úmido. Aí então, a partir de um momento primordial das coisas e de mim, viver e existir foram se compondo e comutando, em etapas, em cascas. Talvez com assombro eu tenha assistido água e pó me virarem na simetria do plano invisível que governa a terra - mas se o fiz, esqueci. Lembro da música, da voz de trovão, da de vento em flauta ou ira, e também do silêncio mais puro que já houve. Intempéries, emoções da hora, indo a vida e vindo.

Lembro da gênese da minha ousada ingenuidade, que tudo queria, na arrogância de achar que podia mais, apenas por ter podido uma vez, sem querer, viver. Ao longo dos dias e das noites sentia que escalava patamares mais sutis e complexos de possibilidades. Apêndices formavam-se segundo intrincada arquitetura antiga e nova ao mesmo tempo, nunca até hoje superada. Em nada notei mãos de artista, nada da marca individual de uma vontade clara – o que não é juízo, apenas leve constatação. Sei é que entre o mundo e eu há como que um sonho, e o que aqui digo é seu enredo, sem interesse. Pois falo comigo no tom de um rio que a si mesmo murmura águas. E são inexatas as coisas. Por exemplo, o mistério é eu não saber de onde vim: no bico de um pássaro, de uma semente de onde, de origem nebulosa, uma questão sem resposta... Os pássaros voam muito e vão longe, e por não falar a sua língua, fico quieto ignorando rotas e histórias. As flores belamente não se importam, em exército as abelhas de cor em cor trabalham e até à morte dançam...

Desde pequeno sinto e sigo o chamado do alto, modulado sempre pela tenacidade da voz da terra. Cada dia é uma luta, num banho diário de luz, ao sopro do vento morno. A minha fidelíssima sombra, ao chegar do fim do dia, cresce sem tamanho até se fundir com a geral da noite, em infinitos matizes de escuros e sonhos. O dia seguinte vem depois na roda dos ciclos com meu devido quinhão de sombra e luz novamente.

Meus atributos são largos e todos, porque não tenho nenhum. Não sinto a função, se é que tenho uma, por isso me interesso somente no nível que cada momento pede, o qual quase sempre é baixo, ou zero. A solidão me ensina tanto quanto a companhia daqueles com quem casualmente vivo. O silêncio da tarde tórrida me agrada e eu penso muito, muito, muito, suspirando. À noite eu respiro.

Antes, à tardinha, vem meu melhor amigo, com quem falo menos que o que queria, pois nos separa a barreira da linguagem. É uma amizade boa e agradável, no entanto. Na manhã em que o conheci logo vi como era inquieto, agitado, um tanto medroso. Dava a sua voz ao dia o dia inteiro, ávido, rápido. Era como um mundo que fosse acabar no dia seguinte. Sempre o admirei pela leveza e facilidade sua de viver. Ele mesmo, em alguns gestos de asa e cabeça, demonstrava mesmo seu orgulho e um tipo sem peso de altivez por suas habilidades próprias.

Porém logo vi também que poder ele voar pelo jardim e pela mata, solto no vento como nunca poderia eu ser, tinha seu preço: parece que o conheci ontem, mas segundo o que ele diz, em sua memória a minha figura alta e forte, verde, marrom, esteve sempre presente, ou aí figura desde que se entende por pássaro. Surpreso, sondando as histórias de minhas cascas e folhagens, de fato encontro na lembrança, muitas vidas e épocas esparsas; ao longo do tapete da passagem dos anos, milhões de abelhas, bilhões de formigas, besouros, milhares de pássaros e infinitos pardais... e entre estes descubro talvez esse que se aninhou em mim e sobre mim dormita...

Mas o que me importa o que eu não sei? O que me importa se na duração de um dia mil criaturas tristes e felizes riem e choram ao meu pé, na minha sombra? Que valor maior do que a qualidade de cristal candente dessa luz, têm seus sons sem sentido? Em minha volta, como o pardal nos meus braços, os homens montam seus ninhos de pedra, e os destroem, e sem saber como é a vida, vivem-na, assim, sem saber que não sabem...

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