quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Stendhal

Dizer que Stendhal não supunha que sua vida sobreviveria em sua obra por séculos seria um clichê de modéstia projetada não aplicável ao caso. A inteligência, a ambição, a circunspecção, o sentido de estratégia, a paixão de Julien Sorel - seu personagem mais célebre - apontam para qualidades biográficas do autor que levam tranquilamente seus leitores a dizerem sim ao prazer e à certeza de ele saber quem é e gozar disso infinitamente...

230 anos depois do dia de seu nascimento, lhe agradeço (como se agradece a um amigo-irmão) por ter sofrido, rido, chorado, vencido e perdido comigo ao longo de dias, semanas e meses em que vivi e revivi a vida de Julien Sorel; agradeço pela jornada ambiciosa e ingênua na floresta de virtudes, vícios, pecados, glórias, difamações, inveja, religião da aristocracia da França do século XIX...

Agradeço por ter me ensinado elementos do óbvio sobre seres humanos, incluindo mentira, amor, paixão, ambição, orgulho, devoção - tudo devidamente confirmado, rechaçado e modulado posteriormente pela Vida fora dos livros...

Agradeço por ter feito companhia ao lado do meu reflexo pálido no espelho, coisa que pra um adolescente ansioso e um tanto cego é muita coisa.

E enfim, no sentido místico-borgiano, agradeço por ter me permitido ser Julien Vinícius Sorel Bezerra por momentos de completude infinitos e inesquecíveis.




quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Um pouco de tarantinologia


Não, se vingar não é uma coisa bonita – foi assim que aprendi e assim que tento ser no dia a dia... Claro que depois daquele tapa na cara dado de forma cínica e injusta por aquela pessoa que te detesta sabe-se lá porquê, a vontade é de chorar um pouco, engolir o rancor momentaneamente  e depois expurgar tudo em forma de um ritual vingativo preparado na penumbra com gargalhadas de bruxa de desenho animado...

Apesar de a vingança matar a alma e envenená-la, como diz o seu Madruga, ela pode sim trazer prazer – que atire a primeira pedra num cartaz de um filme de Tarantino quem nunca cometeu um ato, por menor que tenha sido, de vingança e no fim, tenha se sentido melhor – pelo menos aparentemente...

Mas se você é uma pessoa que tenta antes de tudo viver uma vida de paz e amor, os filmes desse artista da vingança americano são uma boa sugestão de relaxamento catártico.

Não sei quem foi que disse que a vingança é como um ato mágico, pois supõe que ações calculadas e orquestradas sob um sentimento tal terão consequências ilógicas sobre o estado de espírito ou sobre a realidade de quem os comete. A equação é simples e até bíblica: olho por olho, dente por dente. Aliás, se formos nos espelhar nos deuses nossos de cada dia, seríamos bem mais vingativos do que somos: Sodoma e Gomorra, Jericó, Apocalipse, Prometeu, etc. A vingança é uma força muito forte, assim como o medo e o amor. E quem sabe dominar qualquer um deles, ganha um mundo, ganha olhos e mentes.

É com essa força que anima seres humanos e deuses que Tarantino brinca – e muito bem, obrigado. Que eu me lembre, as coisas mais violentas de que fui capaz foram cascudos e empurrões nos meus amados irmãos (não, nunca briguei na escola); mas não nego os batimentos cardíacos fortes diante das cenas de pura vingança que o diretor americano nos oferece numa diversão digna do circis romano. Mas admitamos, não se trata apenas de apelar ao “instinto” de violência evocável em cada ser humano (no contexto preciso) – é um pouco mais do que isso (e o quanto “mais” deixarei impreciso mesmo, já que isso aqui são apenas comentários despretensiosos de quem acabou de ver um filme legal).

Homem versus mulher, vítima versus algoz, negros versus brancos. Kill Bill, À prova de morte, Django Livre – esse foi o último da lista de “vinganças clássicas”. Claro que a hipérbole está presente em todas as histórias de Tarantino: a sacanagem que o Bill faz é realmente uma sacanagem; as meninas perseguidas e assassinadas como animais em À prova de morte são realmente perseguidas e assassinadas;  e em Django Livre, onde um escravo inesperadamente liberto por um caçador de recompensas alemão se vinga de seus opressores, ele é realmente vilipendiado e violado em sua humanidade... E eis aí o caminho pra gente entender o poder diferenciado da vingança em Django se comparado aos outros filmes tarantinescos.

Estamos falando da vingança de um povo abusado, torturado, mastigado pelos sistemas econômicos e religiosos mundiais durante séculos. Estamos falando de milhares de gritos, de litros de sangue, de toneladas de carne queimada e apodrecida sob os olhos de outros seres humanos apáticos ou absurdamente sorridentes, bem vestidos e tementes a deus (não ouso pôr maiúscula aqui pelos melhores e piores motivos). Django, como símbolo óbvio do escravo africano tratado como coisa e depósito de ódios e rancores seculares, queira-se ou não, mexe sim com alguma coisa dentro de você – sobretudo se o tom de pele do espectador for próximo ao do personagem.

Django é fictício, assim como a judia Shoshana de Bastardos Inglórios, que se vinga dos que mataram sua família explodindo um teatro cheio de soldados e autoridades nazistas em Paris. É fictício mas perfeitamente imaginável e possível. Nesse buraco negro histórico, que são os séculos de escravidão, cheio de sangue e dor e trevas, imaginar um herói sedento de vingança eliminando um por um os habitantes da Casa Grande é lógico e aceitável ao espectador.

Não chego a uma conclusão se Tarantino é um doido que sabe que apenas cria filmes que cutucam a alma das pessoas, ou se ele se vê como um pregador que divulga sua filosofia da vingança por meio de suas películas. A primeira opção é a que imagino mais procedente, mas de qualquer maneira, fazer pensar também é um mérito dele. Em seus filmes, o sentido de empatia se estabelece desde o começo: a dor, a tragédia e o abuso dos personagens principais, sejam eles um ex-escravo, uma judia ou uma noiva abandonada, criam imediatamente um laço com o espectador – o que facilita esse exercício empático com as figuras sedentas de vingança: “Se eu fosse esse Django...”, “Se eu fosse a Beatriz...”, “Se eu fosse essa Shoshana...” nascem na nossa cabeça na hora, e o que completa essa frase é o que Tarantino nos mostra na tela. No fim das contas, por meio da sede de vingança, Tarantino nos propõe as doçuras e agruras (sobretudo agruras) de ver a vida através do olhar do Outro -  vamos combinar que isso não é de se esnobar.

O normal é que façamos algumas caretas ao longo do filme, sorriamos um pouco, talvez um tanto culpados diante de uma quantidade não desprezível de sangue que rola, e suspiremos no final, satisfeitos pela ordem restabelecida pelo ato mágico da vingança. O normal é que essa catarse sirva – que sirva bem pra nos purificar e nos fazer deixar pra lá as mágoas e rancores do quotidiano, a fim de evitar saindo por aí matando Bill ou os senhores da Casa Grande... Até porque, há mil e uma maneiras de fazer isso – vamos escolher as menos violentas e deixemos o molho de tomate fazer papel de sangue nos filmes de Tarantino mesmo.