domingo, 10 de março de 2013

As Boas Mulheres da China ou Porque amo Jorge Luis Borges

Porque eu falo tanto de Jorge Luis Borges? Porque penso nele como um sacerdote da literatura - uma pessoa que, deliberadamente ou não, abdicou da vida plena como ser humano em prol de uma relação quase religiosa com os livros. Dono de um volume de leituras absurdo e variadíssimo, e de uma sabedoria toda sui-generis, os exercícios de combinação e recombinação e criatividade resultaram em uma escrita que eu consigo imaginar poucas palavras mais eloquentes do que "mágica" para classificá-la...

No meio de sua filosofia, que se encontra dispersa nos contos,  palestras e poemas que ele escreveu, uma de que gosto muito, e que achei assombrosa - assim como tanta coisa que ele nos deu como literatura - é a ideia de que espaço e tempo não são de forma alguma absolutos e se conformam de acordo com a visão ou percepção individual de cada um. Meus limitados conhecimentos de filosofia me sugerem que ele não foi o primeiro a dizer isso, mas penso que vi aí muito mais do que o solipsismo básico identificável... Talvez a metáfora que ele tenha utilizado de forma tão educativa tenha marcado essa ideia, e é a seguinte: a de que tempo e espaço são como a luz de uma vela que cada ser humano carrega ao longo da vida. Se ainda não estiver claro, pensem um pouco por si mesmos nessa história de tempo e espaço, e também na metáfora e vejam como é ela assustadoramente poética e bonita - digo assustadoramente porque ela implica no ato solitário de existir nesse mundo... ao mesmo tempo que desenha de uma forma linda a figura de duas ou mais pessoas que se encontram, juntando a luz de suas "velas existenciais", compartilhando suas noções de tempo e de espaço como dois vaga-lumes se encontrando no meio da escuridão, interagindo e produzindo um mundo em comum...

Não sei se a poética dessa metáfora anula sua carga de solidão, mas o que me fez pensar nela (não sei se da forma mais logicamente correta) foi a leitura de um dos mais enriquecedores livros que já li na minha vida: "As boas mulheres da China". O título soa simples e simpático como as expressões do rosto da autora, Xinran Xue, uma jornalista chinesa que, decidindo conhecer mais sobre como vivem e quem são as mulheres de seu país, produziu uma das obras mais informativas e emocionantes sobre a cultura do Império do Meio, particularmente a parte concernente às mulheres.

A partir de histórias que ouviu ou leu em seu programa de rádio ao longo de anos, e ainda por meio de entrevistas espontâneas ou casuais com mulheres dos tipos, lugares e classes sociais mais diferentes possíveis, Xinran nos presenteia com um um riquíssimo retrato da situação da mulher na China atual. Estamos falando de personalidades que, a depender da região e do estrato social a que pertencem, vivem como há 800 anos, nos tempos do império, ou como há dez, como na década de 90 ou 2000 em pleno ocidente. Há muita lágrima e muito sangue das mulheres que tiveram seu amor e sua esperança esmagadas pelas engrenagens de um sistema político ditatorial inclemente. Há histórias de tragédias naturais seguidas de tragédias humanitárias, onde as mulheres são as que inegavelmente pagam o maior preço pelo fato de serem o que são: o gênero considerado "frágil" - nunca esse adjetivo me soou mais absurdo do que ao longo da leitura de As Boas Mulheres da China. Algumas histórias - todas reais - têm o mesmo teor moral e trágico de um conto de fadas ou de uma fábula; a mais de uma, a única reação são as lágrimas e em outra, soluços. Não quero fazer aqui a exaltação da literatura de lamúria - não é isso que a autora pretende. Seu trabalho de pesquisa pode se considerar de caráter documental; seu olhar de mulher ávida de saber o que se passa com suas congêneres era inevitável, e seria falso ou inadequado se ela tentasse aplicar-lhe outra perspectiva que não a sua...

A China é um planeta em si praticamente. E uma parte dessa planeta vive num eclipse quase permanente - é aí que vivem milhões de mulheres que existem numa ignorância e numa pobreza extremas, algumas; e numa prisão intelectual, numa tortura afetiva e psicológica desumanas e insustentáveis, outras. Mulheres que, por exemplo, perdidas numa planície num deserto no meio do país, só recebem dos homens uma refeição de papa rala de farinha e água - mulheres que são tratadas pelos homens como moeda de trocas entre clãs... Outras que têm a sexualidade violada das maneiras mais cruéis possíveis, em seu corpo e em sua desinformação... Poderia listar aqui, como exemplos das histórias, infinitos trechos cheios de pesar e de dor, mas aconselho simplesmente a leitura dessa obra, que no esquema da metáfora acima, funciona como uma fogueira ao redor da qual cada um de nós, ignorante muitas vezes do sofrimento alheio, ou às vezes apenas vagamente conscientes do quanto de infelicidade assombra a vida de pessoas por aí (vivendo numa escuridão tal que fazem nossos problemas individuais parecerem desafios de gincana perfeitamente vencíveis), podemos contribuir com sua luz existencial individual...

Sob esse eclipse chinês, muito além das lágrimas que como humanos derrubamos por essas mulheres, o fato de saber passa a ser uma chama, uma coisa que pode resultar em outra, nem que seja a autotransformação, ou o maior respeito pela condição do vizinho, ou a sensibilização em relação às pessoas que aqui, há dezenas de quilômetros, sofrem com a seca ou com a fome, ou com a dor de verem suas filhas e mães assassinadas sem punição...

A dor existe. Transformar a consciência da existência dessa dor em algo de útil e não apenas poéticamente choroso depende do espírito de cada um. A compaixão pode servir, como Nietzsche indicou, como um catalisador para uma epidemia de dor - em que todos choram juntos e nada é feito. Xinran não apresenta as histórias dessas boas mulheres da China com esse intuito. Entre seus objetivos, certamente há a velha, mas importantíssima ideia de lembrar que, mesmo em momentos onde tudo, a nível nacional ou individual, aparentemente vai bem, sempre há algo a ser feito com respeito a algo ou alguém, e que isso não pode ser esquecido, com o risco de se cometerem injustiças dignas de Hitler, pelo simples fato de "não sabermos"...

Xinran hoje é professora universitária em Londres e escreve livros em que dá continuidade a seu trabalho de informação sobre esse planeta China, que a maioria esmagadora dos chamados ocidentais nem de perto conhecem. Em suas falas, dá mostra de uma polidez e de uma delicadeza que vão muito bem com a perspicácia de seu pensamento e a agudez de espírito: é uma mulher inteligente e profundamente marcada pelas histórias que ouviu e viveu - já que ela também foi vítima dos episódios mais desumanos da Revolução Cultural comunista da China. Aqui está uma entrevista dela no programa Roda Viva - que não é das melhores, já que tem-se a nítida impressão de quem nem todos os presentes no debate leram o livro...

Não sei pra quantos das pessoas que ocasionalmente leem essas coisas que escreveo o livro é um dos objetos mais importantes já inventados pelo ser humano, mas considero que aconselhar um livro transformador, apresentar alguém a um grande autor que marcou a sua vida é um dos maiores presentes que se pode dar a alguém. Pois eis aqui um presente - que recebi da minha amiga Joana d'Arc, a quem agradeço demais.

Mas ok, esse tom superlativo meio que cansa no final. Leiam o livro.


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