sexta-feira, 5 de julho de 2013

"O seu Zé usa papel higiênico dupla face, câmbio!"

Um belo dia, 17 anos atrás, fui interpelado pela minha mãe a fim de dar esclarecimentos sobre o conteúdo secreto de um diário que analítico-romanticamente escrevia na época (até hoje na verdade)... Claro que o tom foi de conversa familiar e não de Gestapo ou FBI, mas certamente os sentimentos não foram de alegria e bem estar. Na verdade, me senti ultrajado, apesar de ter sido criado para contar tudo aos pais (diferente de hoje, em que adolescentes se transformam em reis tiranos de suas famílias...). 

A sorte é que, tendo lido na Superinteressante (argh) que Leonardo Da Vinci escrevia da direita à esquerda, o que exigia um espelho para que se lesse seus escritos, resolvera imitá-lo, e essa criptografia primitiva me poupou de mais ultraje e níveis mais elevados de constrangimento...

A questão é que, apesar de não constar nas linhas do meu diário a contabilidade dos lucros com guerras sujas e desnecessárias, os conchavos imundos para derrubar presidentes ou negociar áreas de pré-sal com candidatos de direita à presidência de países americanos, e coisas do tipo, me senti muito mal e atacado nos meus direitos...

Mas não é bem de Julian Assange e de Edward Snowden e sua relação com os EUA e a Europa que queria falar, mas sim sobre o que este último revelou de forma límpida e bombástica a quem interessar possa: nós somos vigiados o tempo todo, em tempo real, online. E por quem? Por um Estado. É a paranoia-pesadelo Big Brother confirmada em alto e bom som. Teorias da conspiração já gritavam isso tudo - mas o carimbo de true story baseado na revelação da existência do Prism, dá o que pensar...

Pensar o quê? Há quem pense dois segundos e conclua que "tudo bem, não tenho nada a esconder". Certo, nem eu... Em tese. Em que pode me prejudicar saber que, além das corporações online (que por meio de entrecruzamento de dados conhecem quase tudo sobre a sua, a minha e as nossas pessoas), agora governos estão cientes dos livros e aplicativos que comprei mês passado? Aparentemente, nada. Mas e se além disso, fico sabendo que eles acompanham cada um dos meus posts e das minhas mensagens privadas, e os dos meus amigos também, sobre temas como "revolução no Brasil", "ditadura capitalista americana", etc... Mais uma vez, a resposta pode ser "Nada demais". Mas pensemos mais alguns segundos: o segredo da informação não é a própria, enquanto unidade em si, mas os cruzamentos, as combinações que se fazem. Lembrem do Google Earth: muito legal vc poder visitar cidades do mundo todo na tela do computador, do celular, do tablet, etc. Mas raciocinemos: se uma empresa como a Google disponibiliza, para meros cidadãos como vc e eu, o mundo todo numa resolução cada vez maior, imagine o que Obama não deve poder visualizar no seu Macbook ou iPad na White House? E tem mais: uma ou duas vezes por mês saem notícias sobre nanorobôs do tamanho de insetos encontrados por participantes de manifestações pelo mundo, microfones descobertos em embaixadas, novas tecnologias que permitem ter acesso a tudo e a todos em todo lugar, a qualquer minuto...

Há um mês, isso tudo seria pura teoria da conspiração, mas agora, depois do Prism, é, no mínimo bom senso e lógico acreditar que nesse exato minuto vc pode estar sendo observado - visualmente e virtualmente - , nem que seja por acaso, por um técnico (humano ou não) de algum ponto do solo americano...

Esse pensamento não me agrada de jeito nenhum. Uma coisa é vc ir ao shopping e saber que um segurança pode estar dando o zoom na bunda da sua amiga ou se divertindo com o corte de cabelo de alguém. Outra coisa é saber que um país que não hesita muito em atacar nações ideológica e fisicamente por pura ambição, está monitorando cada palavra que vc digite ou fale... E isso com a anuência de empresas a quem vc confia simplesmente boa parte da sua vida, como Google e Facebook.

As implicações políticas, psicológicas, sociais da revelação desse Big Brother mundial e cínico vão além do alcance da minha capacidade de reflexão. O que posso dizer é que isso não é certo. Não é certo um país ter tanto poder sobre todos os outros; não é certo um país saber tanto sobre todo mundo. Por enquanto os EUA são uma ditadura capitalista light - mas e se der a louca e eles decidirem, assim, do nada, que vão deixar de serem bonzinhos e começarem uma campanha publicitária muito bem articulada (já que possuem um volume de informações infinito sobre o nosso país) em que o Brasil seja apresentado como um perigo para a ordem mundial e esteja desenvolvendo armas nucleares e etc? Quem poderá nos defender? O Chapolin? 

Ok, nível de paranoia acendeu o sinal amarelo... mas não sem base empírica, que fique claro.

Para fechar a cadeia de ideias do post:

Há um livro do gênio, mestre, magnânimo autor de ficção científica, Arthur C. Clarke, chamado, em inglês, The Light of Other Days. Super resumidamente, conta-se a história de uma máquina, criada num futuro distante, que permite a visualização do que aconteceu em qualquer lugar, em qualquer momento do passado. De início, tal máquina é utilizada apenas por governos e universidades com fins científicos e bélicos, claro. Mas como aconteceu com a internet, a visão capitalista do inventor da máquina, um homem inescrupuloso do universo da mídia, transforma o aparelho em algo popular, e, depois de alguns anos, qualquer cidadão passa a ter acesso ao dispositivo de visualização do passado. As consequências são inúmeras e profundamente sísmicas: imagine vc poder assistir a traições, crimes, mortes, cenas de sexo, de alegria, etc, etc, etc, tudo numa tela, tudo exatamente como aconteceu - o passado como de fato foi diante de seus olhos. Ou seja, não há mais possibilidade de existir mentira, não adianta mais pensar em enganar ou ocultar fatos - mais cedo ou mais tarde tudo o que se está fazendo no presente será visualizado,  num futuro próximo ou distante, por um observador onipresente... Para se ter uma ideia das transformações que ocorrem nas sociedades humanas, aconselho vivamente a leitura desse livro. Como todas as histórias de Clarke, ela é muito bem contada e a cada página vc se assombra diante do brilhantismo e da inventividade do autor.

Conectando o enredo do história acima com o enredo da história do agora, a diferença básica que se sobressai é que no livro de Clarke, todos sabem de tudo - o que configura um tipo de democracia hiperbólica do conhecimento, ou antes, uma tirania espaço-temporal da informação... No nosso hoje, ocorre outra coisa: alguns governos sabem demais da vida de quase todos, e dado que sabemos muito pouco ou quase nada do que realmente pretendem esses defensores da paz e da liberdade, é muitíssimo adequado pensar que vivemos numa das piores ditaduras da história - tão bem aplicada e manejada, tão bem articulada e abafada por narcóticos culturais (Hollywood, Apple, Samsung, Chrysler...) que nós mal nos apercebemos dela...

Viva la revolución!

Viva la paranoia!