terça-feira, 3 de março de 2015

A religião como doença e cura

Como diz Nietzsche, a filosofia de um homem reflete a sua fisiologia, o funcionamento do corpo ao longo de uma vida, e que produz pensamentos que, por sua vez, conduzem essa vida pelo tempo.

Falar de religião sempre será pedir por olhares tortos e pedras nas mãos prontas a serem usadas, mas como a pessoa que vos escreve, não de modo indevido, é tida como levemente doida, vamos bater um papo à la Fátima Bernardes (se ela fosse uma filósofa chata e não uma pseudoapresentadora chatinha) sobre como a religião pode ser cura e doença ao mesmo tempo.

Pessoalmente, vivi esses dois lados da busca por Algo Maior: era como viver num planeta montanhoso e sujeito a estações variadas... Que iam de um verão e de uma primavera revigorantes, a invernos frios, com direito a tragédias sangrentas... Os verões têm a ver com o senso de comunidade que a religião pode proporcionar. Sentir-se acolhido entre pessoas que pensam parecido e que compartilham ideias de unicidade e alegre uniformidade como resistência diante de um mundo mau, é uma terapia permanente contra as feridas e mazelas mentais com que o funcionamento das sociedades atuais nos presenteia. Por outro lado, as tragédias de um furacão aparecem quando você percebe que aquele sol não é tão quente assim e que o que você pensa ser liberdade na verdade é um frágil equilíbrio entre anulação de pensamento crítico e conformidade com tradições familiares e comunitárias que com o tempo vão parecendo mais e mais ilógicas e duvidosas...

A armadilha do pensamento baseado em oposições do tipo certo/errado, bom/mal desesperadoramente ainda trava muitos cérebros, e escapar dela é um primeiro passo para deixar de se contentar em ver arco-íris na TV em preto e branco para, em vez disso, alargar horizontes na percepção das coisas e pessoas. Tanto crentes quanto incréus têm a tendência a separar as pessoas em grupos do Bem e do Mal e atribuir aos membros de cada um características específicas. Uma olhada sincera na realidade diante dos respectivos narizes envolvidos - e um pouco de vergonha na cara - podem revelar um mundo que ao invés de simples e burramente monocromático, é na verdade cheio de matizes de loucura, sanidade, bondade e maldade infinitos.

Assim é que não é porque um ser humano X usa a frase "Jesus te ama" o tempo todo, que automaticamente ele deva ser classificado como filho de Deus. Da mesma forma que uma moça com buço e pochete na cintura ouvindo Maria Gadu tenha assinado seu passaporte para o inferno. Sorry para os preguiçosos de pensamento, mas o mundo não é tão simples. 

Fugir da solidão, do medo da morte, das inseguranças do dia a dia, da dor mental ou física é um imperativo tão forte, que muitas pessoas, na pressa, se agarram à primeira solução que lhes aparece na frente - ou àquela que lhes foi ensinada. Não vamos entrar nas discussões estéticas sobre que estilo de vida é o mais legal e bonito - nos escritos que aqui se encontram, não se trabalha com ideias de certo e errado, mas sim com aquilo que é mais ou menos adequado a uma realidade em que as pessoas possam coexistir sem se matarem e se magoarem de propósito (sim, esse blog é meio pós-hippie, budista, cristão, paz e amor...). 

Consequentemente, dando essa olhada sincera ao redor, dá pra perceber que a galera do "Jesus te ama" de vez em quando, e recentemente, bem mais do que de vez em quando, vacila na prática do que o seu Mestre pregou. A facilidade com que se relega o "amai ao próximo" ao segundo plano em prol de  um "vamos conquistar o mundo custe o que custar" é sintomática. Você ser feliz de tal modo e querer que seus amigos e familiares sejam felizes desse modo é um pensamento bonito. Mas a partir do momento em que você vê que esses amigos e familiares não estão muito felizes aplicando seu modo feliz de vida, e ainda assim insite, obriga ou impõe esse way of life, a coisa passa a ser algo mórbido, doentio e criminoso. E aí a religião deixa de ser cura, no sentido de transformar um ser humano em algo melhor, pra se tornar uma doença, uma paranoia - o que é algo a se combater, a evitar.

"Não julgueis para não serdes julgados" - a quantidade de juízes nas igrejas revela como esse ensinamento não tem sido levado a sério. A quantidade de ataques por parte de fundamentalistas cristãos no Brasil àqueles grupos chamados de minorias revela que o Amor não anda muito na moda. Jesus lavou os pés de uma prostituta, mas pessoas que rezam o pai nosso todo dia atiram pedras e latas (reais ou metafóricas) em lésbicas... Não que homossexuais ou pessoas a favor do aborto sejam anjos natos - na verdade, são seres humanos como quaisquer outros, e que por isso devem ser tratados como quaisquer outros, tanto pro bem, como pro mal - mas porque não sobretudo pro bem? Não é pelo bem que as religiões, quando não se transformam em doenças e paranoias, devem lutar?

Não tenho uma cartilha de como avaliar o caráter mórbido ou saudável de uma religião ou de uma vida religiosa. Mas penso que, se, para que você seja feliz na sua religião, você precise causar dor e sofrimento a pessoas que não têm nada a ver com a sua vida, deve haver aí um problema, que deve ser resolvido. Quando se está doente, o mundo se transforma, o olhar muda: o amigo se torna inimigo, o irmão te odeia secretamente, o mundo quer destruir você... O mundo fica parecendo estar num permanente apocalipse - na Idade Média, por volta do ano 1000, quando a religião se tornou uma epidemia de ódio que queimava e torturava pessoas em praça pública, também se pensava que o fim do mundo estava próximo...

Vai parecer piegas, mas realmente acredito nisso: existe cura pra essa doença, e essa cura é pregada pelas próprias religiões há milênios: o Amor - com A maiúsculo mesmo. Quando você ama - pelo menos é o que se diz e o que penso e/ou sinto - você conhece, entende e protege o ser amado. Amar o filho lindo ou o irmão da igreja, acho que é algo relativamente fácil; mas amar o criminoso ou pelo menos vê-lo como ser humano, ou amar a bicha do trabalho, exige um pouco mais de... cristianismo?

Enfim. Se a vida fosse simples, não teria sido necessário haver Jesus, Buda, Maomé, Abrãao... Mas pra que complicar mais tudo gastando tempo numa busca doida pela diferença...?