sexta-feira, 11 de março de 2016

Abismos, Nietzsche, sexta-feira

Me gustan los abismos oceânicos. Ao contrário do que comumente se pensa, não são zonas mortas onde só as trevas e a morte imperam. São regiões vivas, cheias de energias estranhas, seres esdrúxulos que suportam pressões absurdas e pululam longe do sol da superfície desde sempre, muito antes de polegares opositores ajudarem primatas arrogantes a agarrarem e criarem coisas pra viver e matar e. A vida mesma – como dizem algumas teorias - pode ter surgido ali, no seio de bactérias que vivem sem oxigênio e sem luz. É claro que tem alguma coisa de Jung nisso tudo. As metáforas possíveis para isso que se chama de mente humana são óbvias. Mas não quero reduzir a paixão pela maravilha dos mundos abissais a um mero sentimento oceânico clichê e pseudorreligioso. Porém, dizer que só há curiosidade intelectual aí é igualmente desonesto.

Um cientista americano, entusiasta da exploração do fundo dos mares, disse uma vez que nossa preferência técnica pelo espaço, em detrimento do breu aquático, vem de uma questão cultural: o que está em cima, os céus, a clareza, o mistério das estrelas, é algo bom, positivo, saudável, mais promissor e agradável do que o desejo científico pelo que está em baixo, obscuro, oculto nas trevas, no inferno... Parece justo esse pensamento – todos buscam os céus, e não o inferno. Mais uma metáfora: todos querem o feliz e o contente, não o que rasteja ou nada nos recônditos do invisível interno.

O interesse pop pelas ciências “psi” desmentiriam isso, na opinião de quem discorde. No entanto, o “pop” desse interesse já desanuvia a questão e fala a favor da fuga do que se contrapõe ao que é alegre e feliz. No fundo, no fundo, a tendência é ter medo do que está por dentro – seja dos mares do planeta, seja dos pensamentos e ações de uma pessoa.

Não há argumento central aqui – pelo menos até agora. Fazer a defesa do hábito reflexivo deprimente e tenebroso é quase o contrário do que se pretende... Então falemos de Nietzsche, pra jogar um pouco de luz nesse caminho meio down:

Nietzsche disse que a filosofia de um ser humano é fruto de sua fisiologia. Que djabo isso quer dizer? Conectando isso a “você é o que você come”, um ditado que tem deixado de ser pseudo para se tornar científico nos últimos tempos, o resultado é que, por mais que achemos que somos donos supremos da nossa vida mental ou atitudinal, mais uma vez, no fundo, no fundo, somos mais é o produto de uma série complexa de interações entre ambiente (comer é uma dessas interações) e o funcionamento do corpo que somos, com suas carências, oscilações de hormônios, níveis de açúcar, etc, etc. Ou seja, nossos mais brilhantes pensamentos, nossas mais altas emoções e sentimentos, não são coisas tão nobres assim como queremos pensar – são fruto do que somos enquanto existimos, just like that, sem lugar para ideias cósmicas e profundas sobre destinos grandiosos, vontades transcendentes que comandam a nossa existência única no universo... Ok, mais uma vez, soa deprimente. Mas ainda com Nietzsche:

Ele diz outra coisa: que deve-se construir uma vida como se cria uma obra de arte. E mais: deve-se viver cada momento como se esse momento fosse ecoar e se repetir pra sempre, infinitas vezes, pelos séculos dos séculos, forever and ever...

Respirando um pouco pra se livrar do peso angustiante dessa ideia, o Eterno Retorno, a coisa soa bonita: somos atores e produtores do nosso próprio filme – se quisermos ganhar o Oscar, bora prestar atenção a tudo que fazemos ou dizemos, pois isso fica registrado no Tempo, e sabe-se lá quem ou o que vai assistir nossa obra prima um dia...

Se a vida é uma obra de arte, todos no fim das contas somos artistas – criadores livres para projetarmos nossa narrativa de vida, nosso plano existencial, e, tarefa mais exigente ainda, executá-lo bem, aliás, mais que bem, já que, até que se prove o contrário, só temos uma chance de encenar a peça perfeita.

Essa liberdade extrema para viver uma vida não é lá um pensamento muito fácil ou agradável pra muita gente. Na verdade, não faz diferença – pensando um pouquinho mais, mesmo quem diz “viver é uma questão de fé”, está admitindo que vive a própria vida a partir de um projeto pré-criado, adotado individual e deliberadamente por N razões: educação religiosa, reflexões lógicas, preguiça intelectual...

O teor de responsabilidade individual das ideias de Nietzsche realmente pode ser um peso. Mas ao mesmo tempo, pode ser um alento: é como se o filósofo alemão dissesse: taí a vida, uma folha em branco; escreva, desenhe, faça o djabo a quatro, mas tome posse da sua vida, não importa o que você faça com ela, ela é e será sua obra de arte...

Pessoalmente, acho interessantíssima a ideia de escrever ou pintar sua existência – aí vem uma possível crítica apontando contradições: “mas não somos apenas resultado de interações cegas do ambiente e do corpo, blá blá blá” – yes, isso é o que aponta a ciência atual (e sem caras feias, essa ciência é a mesma que mantém muita gente com doenças crônicas vivas, e nos mantém escravizados com whatsapp e facebook no seu smartphone ou computador... então, um mínimo de respeito aí).

Mas o que Nietzsche diz é: uma vida fundada na ciência também é uma narrativa, um projeto artístico, um esboço de obra existencial. Fica a seu critério adotá-la ou não – porém, é só tomar cuidado com projetos mirabolantes em que você acredite que pode voar ou prescindir de remédios em momentos em que seu corpo (sim, essa coisa que você É, e não que você TEM) precise para continuar a funcionar...

Whatever. Comecei pelos abismos e acabei voltando À superfície em forma de onda no mar... E aí vem mais um pensamento semi-místico à la Jung: não é incrível pensar que aquela água abissal escura, um dia, por meio de correntes lentas e milenares, percorra um caminho globalmente longo, se aqueça, alcance o sol e enfim a superfície e venha circular em forma de onda até bater na praia, na pedra na praia, num rosto ao sol, numa água arrancada à areia... pra virar espuma? Não é incrível?


Ou é simplesmente falta do que fazer numa sexta à noite?

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