quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Encarando o abismo cósmico de Cixin Liu

Se você é do tipo de pessoas que, como eu, olha para o céu noturno como quem mergulha num oceano infinito e desconhecido, em busca de sensações semi-místicas, sentimentos profundos de reverÊncia à grandeza do cosmos ou À nossa pequenez, não leia Cixin Liu. Cixin Liu: esse bruxo chinês, que transformou meu céu estrelado cheio de promessas de novos mundos misteriosos e talvez habitados por seres evoluídos e sábios, num abismo de breu e morte sem fim, o qual, ao ser encarado, te encara de volta com olhos de terror…

Cixin Liu é um escritor chinês que tem sido aclamado como o maior nome da ficção científica chinesa, e um dos maiores nomes da literatura do gÊnero no mundo todo. Quem leu Arthur Clarke pode ter uma ideia do que esperar das histórias de Cixin. Mas apenas uma ideia.

Ter nascido numa cidade pobre da China e ter crescido num período histórico de seu país que combina crescimento econômico vertiginoso com transformações políticas e sociais violentas, deixa seu rastro na vida e na escrita do autor. A grandeza das paisagens, a contagem de longos períodos de tempo, a preferência por caracteres solitários que passam por mudanças profundas e redentoras, a desconfiança do estrangeiro e o cinismo deste, o heroísmo em prol de algo maior – são elementos que orbitam os sistemas do universo desse escritor incrivelmente criativo e sensível. Já se apontou o destacado lugar da estética no mundo de Cixin Liu: não se trata apenas de tecnologia hard, de cenas de guerra mais que épicas, de sequências de eventos super intrincadas que atravessam séculos sem perder sua lógica rigorosa – o mestre chinês sabe pintar bem cenários e objetos – como se Caravaggio pintasse quadros na estética hiperrealista…

A grandeza cósmica romÂntica mencionada acima vira um abismo de horror e desconfiança nas tintas literárias de Cixin. E apesar da sombra que ele joga na experiÊncia cósmica individual, isso faz mais é ampliar e engrandecer a visão que se pode ter do universo, sob uma perspectiva científica. O cara ousa propor soluções hipotéticas pra vários mistérios da ciÊncia e da cosmologia atual: por que o Bing Bang resultou exatamente no mundo como é hoje? Por que até agora não entramos em contato com seres de outro planeta? O que nos reserva o futuro para nós, enquanto habitantes de um pequeno planeta em vias de inutilização por seus próprios moradores?

Não, Cixin não é romÂntico – não no sentido clássico. A desesperança existencial cósmica é apenas compensada por um tipo light de esperança nas habilidades do ser humano de pelo menos postergar seu inevitável fim, construindo uma vida próspera e satisfatória por meio do desenvolvimento científico. O encontro de um imigrante iletrado com o físico Stephen Hawkins é uma das cenas doces com que o autor nos presenteia: doce pero não bobo. O auto-sacrifício pela mulher amada, que resulta numa metamorfose através dos séculos, que, por sua vez salva a humanidade do esquecimento definitivo, também afaga o coração do leitor, tão obscurecido pelas trevas que nos alimentam nas páginas de Cixin…

Infelizmente, há poucos livros do autor chinês traduzidos em português. O primeiro escritor de língua não inglesa a vencer o oscar da literatura de ficção científica ainda é um pouco inacessível ao leito brasileiro. Mas pra mergulhar nos espelhos fantásticos de Cixin, O Problema dos TrÊs Corpos, que soa muito como título de livro da Agatha Christie, é um ótimo começo. Trata-se do primeiro livro de uma trilogia estonteante, inteligentíssima, inovadora, instigante e inspiradora. Uma saga cósmica, quÂntica e dimensional de tirar o fôlego. Há livros que mudam seu jeito de pensar, e Às vezes, de viver: esse é um deles. Compartilhar algo assim, como disse Jorge Luis Borges, é um dos melhores presentes que se pode dar a alguém.

Leia Cixin Liu, apaixone-se mais ainda pela grandeza do cosmos, deguste da beleza das aventuras científicas, do medo do abismo, dos sussurros que se ouve quando ele encara de volta…

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