Como diz Nietzsche, a filosofia de um homem reflete a sua fisiologia, o funcionamento do corpo ao longo de uma vida, e que produz pensamentos que, por sua vez, conduzem essa vida pelo tempo.
Falar de religião sempre será pedir por olhares tortos e pedras nas mãos prontas a serem usadas, mas como a pessoa que vos escreve, não de modo indevido, é tida como levemente doida, vamos bater um papo à la Fátima Bernardes (se ela fosse uma filósofa chata e não uma pseudoapresentadora chatinha) sobre como a religião pode ser cura e doença ao mesmo tempo.
Pessoalmente, vivi esses dois lados da busca por Algo Maior: era como viver num planeta montanhoso e sujeito a estações variadas... Que iam de um verão e de uma primavera revigorantes, a invernos frios, com direito a tragédias sangrentas... Os verões têm a ver com o senso de comunidade que a religião pode proporcionar. Sentir-se acolhido entre pessoas que pensam parecido e que compartilham ideias de unicidade e alegre uniformidade como resistência diante de um mundo mau, é uma terapia permanente contra as feridas e mazelas mentais com que o funcionamento das sociedades atuais nos presenteia. Por outro lado, as tragédias de um furacão aparecem quando você percebe que aquele sol não é tão quente assim e que o que você pensa ser liberdade na verdade é um frágil equilíbrio entre anulação de pensamento crítico e conformidade com tradições familiares e comunitárias que com o tempo vão parecendo mais e mais ilógicas e duvidosas...
A armadilha do pensamento baseado em oposições do tipo certo/errado, bom/mal desesperadoramente ainda trava muitos cérebros, e escapar dela é um primeiro passo para deixar de se contentar em ver arco-íris na TV em preto e branco para, em vez disso, alargar horizontes na percepção das coisas e pessoas. Tanto crentes quanto incréus têm a tendência a separar as pessoas em grupos do Bem e do Mal e atribuir aos membros de cada um características específicas. Uma olhada sincera na realidade diante dos respectivos narizes envolvidos - e um pouco de vergonha na cara - podem revelar um mundo que ao invés de simples e burramente monocromático, é na verdade cheio de matizes de loucura, sanidade, bondade e maldade infinitos.
Assim é que não é porque um ser humano X usa a frase "Jesus te ama" o tempo todo, que automaticamente ele deva ser classificado como filho de Deus. Da mesma forma que uma moça com buço e pochete na cintura ouvindo Maria Gadu tenha assinado seu passaporte para o inferno. Sorry para os preguiçosos de pensamento, mas o mundo não é tão simples.
Fugir da solidão, do medo da morte, das inseguranças do dia a dia, da dor mental ou física é um imperativo tão forte, que muitas pessoas, na pressa, se agarram à primeira solução que lhes aparece na frente - ou àquela que lhes foi ensinada. Não vamos entrar nas discussões estéticas sobre que estilo de vida é o mais legal e bonito - nos escritos que aqui se encontram, não se trabalha com ideias de certo e errado, mas sim com aquilo que é mais ou menos adequado a uma realidade em que as pessoas possam coexistir sem se matarem e se magoarem de propósito (sim, esse blog é meio pós-hippie, budista, cristão, paz e amor...).
Consequentemente, dando essa olhada sincera ao redor, dá pra perceber que a galera do "Jesus te ama" de vez em quando, e recentemente, bem mais do que de vez em quando, vacila na prática do que o seu Mestre pregou. A facilidade com que se relega o "amai ao próximo" ao segundo plano em prol de um "vamos conquistar o mundo custe o que custar" é sintomática. Você ser feliz de tal modo e querer que seus amigos e familiares sejam felizes desse modo é um pensamento bonito. Mas a partir do momento em que você vê que esses amigos e familiares não estão muito felizes aplicando seu modo feliz de vida, e ainda assim insite, obriga ou impõe esse way of life, a coisa passa a ser algo mórbido, doentio e criminoso. E aí a religião deixa de ser cura, no sentido de transformar um ser humano em algo melhor, pra se tornar uma doença, uma paranoia - o que é algo a se combater, a evitar.
"Não julgueis para não serdes julgados" - a quantidade de juízes nas igrejas revela como esse ensinamento não tem sido levado a sério. A quantidade de ataques por parte de fundamentalistas cristãos no Brasil àqueles grupos chamados de minorias revela que o Amor não anda muito na moda. Jesus lavou os pés de uma prostituta, mas pessoas que rezam o pai nosso todo dia atiram pedras e latas (reais ou metafóricas) em lésbicas... Não que homossexuais ou pessoas a favor do aborto sejam anjos natos - na verdade, são seres humanos como quaisquer outros, e que por isso devem ser tratados como quaisquer outros, tanto pro bem, como pro mal - mas porque não sobretudo pro bem? Não é pelo bem que as religiões, quando não se transformam em doenças e paranoias, devem lutar?
Não tenho uma cartilha de como avaliar o caráter mórbido ou saudável de uma religião ou de uma vida religiosa. Mas penso que, se, para que você seja feliz na sua religião, você precise causar dor e sofrimento a pessoas que não têm nada a ver com a sua vida, deve haver aí um problema, que deve ser resolvido. Quando se está doente, o mundo se transforma, o olhar muda: o amigo se torna inimigo, o irmão te odeia secretamente, o mundo quer destruir você... O mundo fica parecendo estar num permanente apocalipse - na Idade Média, por volta do ano 1000, quando a religião se tornou uma epidemia de ódio que queimava e torturava pessoas em praça pública, também se pensava que o fim do mundo estava próximo...
Vai parecer piegas, mas realmente acredito nisso: existe cura pra essa doença, e essa cura é pregada pelas próprias religiões há milênios: o Amor - com A maiúsculo mesmo. Quando você ama - pelo menos é o que se diz e o que penso e/ou sinto - você conhece, entende e protege o ser amado. Amar o filho lindo ou o irmão da igreja, acho que é algo relativamente fácil; mas amar o criminoso ou pelo menos vê-lo como ser humano, ou amar a bicha do trabalho, exige um pouco mais de... cristianismo?
Enfim. Se a vida fosse simples, não teria sido necessário haver Jesus, Buda, Maomé, Abrãao... Mas pra que complicar mais tudo gastando tempo numa busca doida pela diferença...?
Andando assim pela rua, esse
rapaz nos seus 20 e poucos anos não aparenta ter sido o que era há apenas
alguns dias: “Eu vivia trancado num mundo fechado, sabe? Vivia atrás de
máscaras... Algumas a sociedade me forçou a criar... Outras eu criei pra me
defender e me sentir mais forte... Mas era só uma ilusão...”
Francysgleusson Armandino (nome
fictício) nasceu numa família de classe média. Estudou em escolas particulares
e públicas. Ainda criança, pais e professores perceberam algo diferente nele. Hoje ele
mesmo conta que também se sentia diferente: “Eu chorava de vez em quando
sozinho. Olhava meus amigos, principalmente na adolescência e pensava: eu não
sou como eles, feliz, tranquilo, não tenho namorada... Todo mundo pertencia a uma família rica que vivia em festas e eventos importantes... Eu não tinha nada
disso... Me sentia muito mal...”
As situações adversas em que
passou a viver por conta do jeito diferente que identificava em si mesmo, levaram Francysgleusson a tentar ser como os outros. Num esforço sobre-humano, tentou
mimetizar, imitar os comportamentos que via ao ser redor, aqueles que se consideravam os "corretos". Foi nesse momento,
conta ele, que começou o inferno na sua vida, que ele disfarçava de céu tão
bem, que ninguém, aparentemente, notava.
“Eu então passei a ser o bem
sucedido graduado em Direito. Saía todos os dias para lugares incríveis, com
pessoas lindas, bebendo drinks exóticos e caros, em festas exclusivas. Vivia
sorrindo em poses dignas de capa de revista. Tudo o que eu postava recebia
centenas de curtidas, até de pessoas que eu sabia que não gostavam de mim. No
meu trabalho, eu era o melhor. Meu currículo online era extenso e cheio nomes
pomposos de empresas onde todo mundo queria trabalhar. Entre as minhas centenas
de contatos no facebook estavam inclusive celebridades locais e nacionais. Meus
gostos musicais eram elogiados, todo mundo curtia os filmes que eu via... No
dia a dia eu andava sempre bem humorado, e não lembro de precisar de ninguém
para conversar sobre coisas tristes – eu nunca estava triste. Nunca precisei
pedir desculpas, porque eu não cometia erros. E nem admitia erros! Ligar pra
alguém sem antes ser procurado? – nunca! Usar frases como “gosto de vc”, “estou
com saudade”, “não vai embora, tá cedo” – não, não estavam no meu vocabulário.
Eu me sentia bem assim, sabe. Me acostumei a ser essa pessoa perfeita, essa
entidade emblemática – me sentia como o protagonista de uma série americana que
falava sobre pessoas populares e bem sucedidas...”
E Francysgleusson levaria a sua
vida assim por tempos indefinidos... Se não fossem os efeitos colaterais de um
tal estilo de vida. Postar fotos sorridente enquanto estava com vontade de
chorar começou a ser mais que incômodo, tornou-se doloroso. Publicar a imagem
de amigos abraçados e felizes, quando há poucos segundos antes dos cliques, os
mesmos se olhavam com desprezo e raiva, de repente lhe passou a parecer
extremamente de mal gosto... "Digitar kkkkkkkkk com uma lágrima descendo do lado esquerdo era clássico..." E os eternos bons dias on line, nos quais convidava
todos a ser felizes, enquanto que ele nem lembrava mais o que era felicidade
fora de fotos e vídeos e frases meticulosamente pensadas para timelines das
redes sociais?
“Eu percebi que havia alguma
coisa estranha... Fui lembrando da minha infância... Sim, havia alguma coisa
estranha... Havia alguma coisa dentro de mim que não combinava com o que eu via
fora...” E essa coisa, Francysgleusson descobriu de uma forma dolorosa e
assustada, como acontece a muitos jovens, e pessoas mais maduras também: “Então,
finalmente eu descobri, eu me assumi... Foi difícil, não foi fácil... Eu vi
exatamente o que eu era, sem culpa nem medo, I am what I am...”
“Isso mesmo, eu não podia
esconder isso pra sempre, não tinha como viver encubado, dentro de uma armário
feito de fotos e postagens perfeitas online e caras e bocas ultrafelizes em
público: eu era o que eu era: um ser humano!”
- Foi nesse momento então que
você se deu conta de que você tinha certas necessidades...?
- Sim. Percebi que querer
conversar sinceramente com alguém, olhando nos olhos, não era uma coisa
pervertida... Era normal! Antes, pensava que dizer pra alguém que tinha errado
e que me sentia mal por isso, correspondia a se declarar um doente, um
psicopata, um looser... Mas depois vi que apenas personagens de filmes e heróis
de seriados americanos são ao mesmo tempo felizes, bonitos, infalíveis, conhecedores
de todas as grandes cidades do mundo, leitores de todas as grandes obras, e
etc... Realizei que não saber a resposta pra uma pergunta é algo que acontece a
todo mundo... Sentir saudade – essa safadeza – é algo que ocorre todo dia...
Até mesmo gostar mais de alguém do que esse alguém de você – isso é humano!
- São descobertas perturbadoras...
Como você lidou com isso, com essa descoberta de que no fundo, você era um ser
humano e não um personagem de novela ou de seriado americano?
- Saí do armário aos poucos,
sabe? No começo foi difícil, porque demonstrar a sua humanidade aos outros
ainda causa surpresa e medo: as pessoas têm medo do que não conhecem. Então
quando te veem dizendo alguma coisa num tom de voz sincero, ou admitindo um
erro, ou elogiando uma pessoa que todos consideram ser um inimigo seu, elas te
olham esquisito, como se você estivesse vestindo um modelito verde limão...
- E hoje, como é a sua vida fora
do armário da vida perfeita?
- Hoje eu tenho amigos que
compartilham comigo a sua condição de seres humanos. Conversamos, saímos
juntos, nos apoiamos – isso é muito importante. Somos xingados nas redes
sociais, mas aprendemos muito com nosso ato de coragem de sermos quem somos,
sabe? Ser diferente é difícil na nossa sociedade... mas vale a pena ser você...
- Então você teria um recado
para aquelas pessoas que vivem os momentos infelizes que você viveu por não assumirem
sua condição, por não quererem ser o que são de fato?
- Sim, sim: olha, pessoal, eu sei
que não é fácil. Ser perfeito, bonito e feliz 24 horas é a ordem do dia. A
sociedade não sabe lidar com o que diverge do que se considera “normal” – e o
que é normal? Normal é ser popular, ser sempre bem humorado online, ser forte e
intocável no dia a dia... Isso é o que exigem de todos nós. Mas você, que vive
sua vida de personagem de filme e novela, com certeza sente que tem alguma coisa
errada... e é porque tem... Tem um provérbio chinês, sabe, que diz que ver uma bailarina é a coisa mais linda que existe – mas ela treina, treina pra
conseguir encantar a todos – porém ninguém consegue viver
24 horas nas pontas dos pés, ninguém consegue andar o dia todo com um salto alto... Não é humano!
Simplesmente não é! Então, a mesma coisa com pessoas como eu: você não é uma
foto de perfil, você não é um dos amigos do Friends ou dos deseperados do ThE
Walkind Dead... Você é um ser humano, cara! Não tem script pra tua vida, não
tem ângulo certo pra cÂmera existencial da vida que te filma todo tempo! Você é
um ser humano! Um homem ou uma mulher (ou homem-mulher, etc) de verdade! Então,
tenha força, vença suas barreiras, vença os obstáculos – sai do armário! Be
happy!
Agradecemos ao Francysgleusson
pela entrevista e por compartilhar sua história de superação ao assumir a falibilidade e incompletude essencialmente humanas. Lembrando que dentro de duas
semanas, acontece na cidade a primeira Parada do Orgulho Humano. Várias celebridades assumidamente humanas, como o Dalai Lama, Leonardo Boff e Nietzsche, confirmaram presença. Espera-se que o evento reúna número maior de participantes, blá blá blá blá blá...