quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Pessoas, carros, viadutos e, de novo, jumentos


Pessoas

Seres humanos, essa interessante espécie animal da qual (orgulhosa e vergonhosamente) faço parte. Sabe-se que existem milhares de espécies de insetos no planeta, de todos os tipos, cores, índoles e tamanhos – me pergunto se a variedade entre pessoas do mundo todo é maior ou menor... ou alguém duvida que existam pessoas-barata, pessoas-borboleta, pessoas-formiga, cupim, louva-deus, esperança, cigarra, gafanhoto...?
Adoro usar a natureza como fonte de comparações e metáforas. Tem um inseto por exemplo, uma espécie de vespa – que acho até que serviu de inspiração pro filme Alien – que simplesmente pôe seus ovos no interior do corpo de uma lagarta viva. Alguns dias depois, os ovos eclodem, e as larvinhas de vespa se alimentam da lagarta, devorando-a de dentro pra fora – viva da silva... Pelo menos até que a prole saia e virem novas vespinhas simpáticas e aliens...

Já compararam nossas sociedades humanas com formigas, até eu já escrevi umas coisinhas sobre isso. Devo ter falado tb sobre como essa comparação é inadequada: pois formigas trabalham para que as formigas, todas as formigas, vivam – aquela coisa meio “comunista” de “o importante é o formigueiro”... Bem, mas elas vivem. Não me sentiria muito bem se os nossos governantes nos vissem como formigas – que devem trabalhar pelo “bem comum” (que bem comum?), abandonando a sua individualidade e coisa e tal. Mas também não me apetece muito que nossos governantes se comportem como parasitas, verdadeiras lombrigas solitárias (não são mais insetos, mas tudo bem), nos devorando por dentro, se alimentando vorazmente dos 37% de impostos que pagamos no feijão ou na farinha... e transformando isso tudo, por meio de processos cínicos – a corrupciossíntese – em caviar e lagosta...

Se chá de alho ou os remédios anuais (leia direito!) pra verme não estão resolvendo muito, que tal tentarmos a lendária pílula do mato: dizem que – no caso de cães – ou ela cura o bicho ou mata de vez... Mas as madames vão gritar loucas: pra que mexer nas estruturas de tudo? Pra que mudar hábitos administrativos e corporativos que vêm desde as sesmarias? O ditado que vale nesta cidade e neste país, nesse momento é: é mais lucrativo remediar do que prevenir.


Carros

Será que mister Ford suspeitava que um dia suas máquinas de transporte pesadas e poluidoras um dia se tornariam mais importantes do que seres humanos? Não vou dizer que duvido, porque não sei. Também não vou dizer que meu sonho secreto é destruir todo e cada um dos automóveis que circulam no planeta. A nossa civilização do jeito que é hoje precisa de velocidade, precisa se locomover: #fato (pra usar essa irritante hashtag adolescente). Mas ousaria dizer que quando ele teve a ideia de produzir máquinas de transporte em série, pensava, além de no lucro, na função da coisa: ir de um lugar ao outro mais rápido, mais comodamente. Em 1900 e pouco, preocupações sobre meio ambiente e mobilidade urbana pareciam sem sentido. Pois muito bem: benvindo à Fortaleza do século XXI: praia, sol, asfalto, ruas estreitas, carros e carros e carros... E na sequência vêm: stress, brigas no trânsito, acidentes, poluição, barulho e, claro, feiura – sim, não sei qual é a beleza de ver sob o sol escaldante uma fila infinita de carros fritando e abarrotando a cidade...

Os mais otimistas e amantes de carros e de gasolina se concentrarão num dos elementos da sequência anterior: estradas, ruas, avenidas – ou antes, na falta delas. O problema é esse, dirão: a falta de novas ruas e avenidas e, claro, viadutos. Aí novamente entram as comparações biologizantes: todo mundo sabe que pra qualquer espécie parasita, quanto mais hospedeiro, mas parasita, ou seja: quanto mais estrada, mais carro,  já que o sonho tão bem cultivado pela tia Publicidade nas emergentes classes C e E é ter um carro, qualquer carro, qualquer preço, mesmo que não seja necessário. Em Fortaleza são mais de cem novos carros por dia injetados nas ruas da cidade, a maioria levando uma ou duas pessoas, em distâncias menores que alguns quilômetros... É preciso ser um gênio pra sacar que esse esquema não tem futuro?

Não tenho nada contra carros. Na verdade, eu os amo nos fins de semana, e recentemente descobri que em viagens, é uma dádiva – e não os trocaria pelos cavalos ou pelas carroças que predominaram até menos de um século atrás, transportando as pessoas a menos de 50 km por hora.

Mas eu amo bicicletas. Vou surpreender alguém se disser que em muitos percursos longos e congestionados da cidadade ando mais rápido do que o trânsito cheio de atrasados e estressados? E numa sociedade de gordos e inertes, onde se paga uma fortuna pra pedalar na frente de uma televisão, e onde sempre se reclama de stress e de falta do que fazer, a bicicleta me faz, no fim de uma boa volta, me sentir pronto pra tudo. Mas a apologia à bike deixo pra outor post. Falemos de viadutos.


Viadutos

É claro que há uma questão estética e cultural no meio das discussões sobre o Cocó e sobre o nosso querido viaduto: se eu digo “progresso”, vc pensa em duas pessoas sorridentes andando de bicicleta ou em carros velozes cruzando um viaduto? Normal, é isso que vemos em todo lugar, num tipo mórbido e meio inconsciente de “propaganda urbanística”: todos devemos ser como São Paulo: cinzenta, cheia de gente e de viadutos... Ousaria chutar que deve existir doido que curte um engarrafementozinho no fim de tarde: que prazer impagável, hein, curtir um som no ar condicionado enquanto que os peões passam suados do lado de fora, voltando do trabalho? Pois bem, aproveitemos essa imagem e pensemos: como se discute bem estar no trÂnsito, mobilidade social, humanização da cidade, com uma pessoa que tenha uma mentalidade dessas? Uma pessoa que vê o cinza e o concreto como modelo de beleza urbana? Os princípios que cada um dos representantes dos lados da discussão sustenta são, a priori, diferentes: um quer a diferença, a distância, o exclusivo, o caro, a divisão; o outro pensa mais em todos vivendo saudáveis num espaço urbano que não deixe de ser humano. Não estou falando de anjos tocando harpas debaixo de árvores na Praça do Ferreira: só estou falando em lembrar que: CIDADES SÃO FEITAS POR SERES HUMANOS, logo (por favor, corrijam se eu estiver errado), essa p*rra de cidade também deveria ser feita PARA seres humanos. Carros são objetos, meios, máquinas – os habitantes de Fortaleza são os fortalezenses, nós respiramos oxigênio e não CO2; nós temos pernas e não rodas nos pés.

Pois bem, viadutos. Não sou engenheiro, nem administrador de empresas – mas tenho cérebro e vejo coisas e acho que aprendi a pensar ao longo de trÊs décadas, então digo o seguinte:

Quando se quer fazer alguma coisa, dá pra fazer. “Não dá pra fazer um túnel perto do Rio Cocó porque tudo alaga”. Já fizeram um túnel debaixo de um mar. “Mas vai ter que desapropriar dois prédios”. Desapropriaram muito mais do que isso, e de maneira não tão simpática.. ah, mas era na periferia! “Mas ninguém vai querer andar de bicicleta porque o sol é muito quente”. Em Amsterdam senhoras de 80 anos andam de bicicleta, executivos vão ao trabalho de bike, famílias andam de bike juntas – e ninguém morre; a cidade é silenciosa, o ar é bom de respirar, tem árvore até dar uma dor. “E o sol... tá pôdi?” Existe um tipo de máquina natural que tem a mágica capacidade de transformar água, gás carbônico, minerais e luz em oxigênio, e tudo isso de graça e sobretudo, dando de bônus uma cobertura verde muito bonita que produz sombras que já salvaram vidas, inclusive às daqueles que jogaram spray de pimenta na cara de cidadãos descontentes uns dias atrás... Ah, mas claro, plantar árvores ao lado de ciclovias é uma coisa mágica, que necessita de enoooooormes investimentos, muito maiores do que aqueles investidos ao longo dos 20 ANOS que foram gastos pra construir UMA LINHA do metrô de Fortaleza...

Mas como convencer o seu Zé ou o estudante de medicina Francysgleysson a abandonarem seus carros e andar de bike? Publicidade: ou como vc acha que nos fazem comprar aparelhos celulares caros, roupas de marca e outros objetos cujo uso real que fazemos no dia a dia não justifica a compra? Em Amsterdam o processo durou décadas. “Mas Fortaleza não é Amsterdam”. Isso é bem verdade: mas cadê o nosso jeitinho brasileiro? A gente num adora furar fila pra chegar na frente primeiro? Pq não aproveitar essa tendência  a querer se dar bem e pular a fase da cidade totalmente parada no trânsito, do dinheiro gasto em viadutos e  obras faraônicas superfaturadas, dos rodízios irritantes e etc, enfim, e passar logo pra fase onde Fortaleza é uma cidade cheia de sol e mar e árvores, onde só anda de carro quem realmente precisa ir pra longe... onde quem pensa direito prefere economizar 1000 reais de gasolina por mês se mantendo em forma de graça numa bike?

Uma sugestão de resposta vem a seguir.


Jumentos

Talvez hoje Jesus tivesse nascido dentro de um carro, já que pro recenseamento obrigatório em Belém certamente as rodovias e viadutos estariam cheios de carros... Isso se Maria não morresse num acidente devido a um motorista bêbado ou outro agressivo saindo do carro com uma chave de fenda na mão...

Já falei antes e repito: jumentos são criaturas formidáveis, inteligentes para o que existem: viver como jumentos. Nós os escravizamos pra turbinar a nossa civilização, e agora, atribuir-lhes a “vergonha” de serem burros, no sentido de imprestáveis, estúpidos, etc, é simplesmente... burro: montamos literalmente nos coitados durante séculos (e ainda hoje, of course) e cuspimos no lombo que nos susteve?

Mas dobrando-me À força da linguagem e do hábito: sabe porque seu Zé não vai abadonar seu carro recém comprado, nem o Carlos Eduardo Francyscgleysson nunca que vai vender o carro que ganhou do pai, nem os funcionários da prefeitura vão parar de “protestar” a favor da construção de um viaduto em cima do que deveria ser uma reserva ambiental?

Sabe porque vamos aumentar a temperatura média da cidade trocando terra por asfalto, erguendo torres e estradas de concreto, derrubando árvores em vez de plantar, aplaudindo o cinza do sul enquanto temos esse verde-azul lindo do mar gritando pra sermos mais legais e felizes e naturais?

Sabe porque? Porque, como dizem as ceguinhas de Campina Grande, “a pessoa é para o que nasce”, e nem para sermos jumentos (comendo capim e carregando salvadores nos lombos) nascemos.

E mais uma vez, me rendendo às nossas expressões regionais (eloquentes de um jeito que chega a emocionar), digo: “Queima, quengaral!!! Pega fogo cabaré!” Bora asfaltar logo o Aterro da Praia de Iracema todo! Dava um estacionamento só a massa, ó! E prefeito, faz a mesma coisa com o Cocó todo! OS frequentadores do Iguatemi agradecem... mas não agradecem mais do que as construtoras e os eternos bastardos do Estado, que não largam essas tetas fartas de jeito nenhum!

#ViadutoSim

#JumentosSim

sexta-feira, 5 de julho de 2013

"O seu Zé usa papel higiênico dupla face, câmbio!"

Um belo dia, 17 anos atrás, fui interpelado pela minha mãe a fim de dar esclarecimentos sobre o conteúdo secreto de um diário que analítico-romanticamente escrevia na época (até hoje na verdade)... Claro que o tom foi de conversa familiar e não de Gestapo ou FBI, mas certamente os sentimentos não foram de alegria e bem estar. Na verdade, me senti ultrajado, apesar de ter sido criado para contar tudo aos pais (diferente de hoje, em que adolescentes se transformam em reis tiranos de suas famílias...). 

A sorte é que, tendo lido na Superinteressante (argh) que Leonardo Da Vinci escrevia da direita à esquerda, o que exigia um espelho para que se lesse seus escritos, resolvera imitá-lo, e essa criptografia primitiva me poupou de mais ultraje e níveis mais elevados de constrangimento...

A questão é que, apesar de não constar nas linhas do meu diário a contabilidade dos lucros com guerras sujas e desnecessárias, os conchavos imundos para derrubar presidentes ou negociar áreas de pré-sal com candidatos de direita à presidência de países americanos, e coisas do tipo, me senti muito mal e atacado nos meus direitos...

Mas não é bem de Julian Assange e de Edward Snowden e sua relação com os EUA e a Europa que queria falar, mas sim sobre o que este último revelou de forma límpida e bombástica a quem interessar possa: nós somos vigiados o tempo todo, em tempo real, online. E por quem? Por um Estado. É a paranoia-pesadelo Big Brother confirmada em alto e bom som. Teorias da conspiração já gritavam isso tudo - mas o carimbo de true story baseado na revelação da existência do Prism, dá o que pensar...

Pensar o quê? Há quem pense dois segundos e conclua que "tudo bem, não tenho nada a esconder". Certo, nem eu... Em tese. Em que pode me prejudicar saber que, além das corporações online (que por meio de entrecruzamento de dados conhecem quase tudo sobre a sua, a minha e as nossas pessoas), agora governos estão cientes dos livros e aplicativos que comprei mês passado? Aparentemente, nada. Mas e se além disso, fico sabendo que eles acompanham cada um dos meus posts e das minhas mensagens privadas, e os dos meus amigos também, sobre temas como "revolução no Brasil", "ditadura capitalista americana", etc... Mais uma vez, a resposta pode ser "Nada demais". Mas pensemos mais alguns segundos: o segredo da informação não é a própria, enquanto unidade em si, mas os cruzamentos, as combinações que se fazem. Lembrem do Google Earth: muito legal vc poder visitar cidades do mundo todo na tela do computador, do celular, do tablet, etc. Mas raciocinemos: se uma empresa como a Google disponibiliza, para meros cidadãos como vc e eu, o mundo todo numa resolução cada vez maior, imagine o que Obama não deve poder visualizar no seu Macbook ou iPad na White House? E tem mais: uma ou duas vezes por mês saem notícias sobre nanorobôs do tamanho de insetos encontrados por participantes de manifestações pelo mundo, microfones descobertos em embaixadas, novas tecnologias que permitem ter acesso a tudo e a todos em todo lugar, a qualquer minuto...

Há um mês, isso tudo seria pura teoria da conspiração, mas agora, depois do Prism, é, no mínimo bom senso e lógico acreditar que nesse exato minuto vc pode estar sendo observado - visualmente e virtualmente - , nem que seja por acaso, por um técnico (humano ou não) de algum ponto do solo americano...

Esse pensamento não me agrada de jeito nenhum. Uma coisa é vc ir ao shopping e saber que um segurança pode estar dando o zoom na bunda da sua amiga ou se divertindo com o corte de cabelo de alguém. Outra coisa é saber que um país que não hesita muito em atacar nações ideológica e fisicamente por pura ambição, está monitorando cada palavra que vc digite ou fale... E isso com a anuência de empresas a quem vc confia simplesmente boa parte da sua vida, como Google e Facebook.

As implicações políticas, psicológicas, sociais da revelação desse Big Brother mundial e cínico vão além do alcance da minha capacidade de reflexão. O que posso dizer é que isso não é certo. Não é certo um país ter tanto poder sobre todos os outros; não é certo um país saber tanto sobre todo mundo. Por enquanto os EUA são uma ditadura capitalista light - mas e se der a louca e eles decidirem, assim, do nada, que vão deixar de serem bonzinhos e começarem uma campanha publicitária muito bem articulada (já que possuem um volume de informações infinito sobre o nosso país) em que o Brasil seja apresentado como um perigo para a ordem mundial e esteja desenvolvendo armas nucleares e etc? Quem poderá nos defender? O Chapolin? 

Ok, nível de paranoia acendeu o sinal amarelo... mas não sem base empírica, que fique claro.

Para fechar a cadeia de ideias do post:

Há um livro do gênio, mestre, magnânimo autor de ficção científica, Arthur C. Clarke, chamado, em inglês, The Light of Other Days. Super resumidamente, conta-se a história de uma máquina, criada num futuro distante, que permite a visualização do que aconteceu em qualquer lugar, em qualquer momento do passado. De início, tal máquina é utilizada apenas por governos e universidades com fins científicos e bélicos, claro. Mas como aconteceu com a internet, a visão capitalista do inventor da máquina, um homem inescrupuloso do universo da mídia, transforma o aparelho em algo popular, e, depois de alguns anos, qualquer cidadão passa a ter acesso ao dispositivo de visualização do passado. As consequências são inúmeras e profundamente sísmicas: imagine vc poder assistir a traições, crimes, mortes, cenas de sexo, de alegria, etc, etc, etc, tudo numa tela, tudo exatamente como aconteceu - o passado como de fato foi diante de seus olhos. Ou seja, não há mais possibilidade de existir mentira, não adianta mais pensar em enganar ou ocultar fatos - mais cedo ou mais tarde tudo o que se está fazendo no presente será visualizado,  num futuro próximo ou distante, por um observador onipresente... Para se ter uma ideia das transformações que ocorrem nas sociedades humanas, aconselho vivamente a leitura desse livro. Como todas as histórias de Clarke, ela é muito bem contada e a cada página vc se assombra diante do brilhantismo e da inventividade do autor.

Conectando o enredo do história acima com o enredo da história do agora, a diferença básica que se sobressai é que no livro de Clarke, todos sabem de tudo - o que configura um tipo de democracia hiperbólica do conhecimento, ou antes, uma tirania espaço-temporal da informação... No nosso hoje, ocorre outra coisa: alguns governos sabem demais da vida de quase todos, e dado que sabemos muito pouco ou quase nada do que realmente pretendem esses defensores da paz e da liberdade, é muitíssimo adequado pensar que vivemos numa das piores ditaduras da história - tão bem aplicada e manejada, tão bem articulada e abafada por narcóticos culturais (Hollywood, Apple, Samsung, Chrysler...) que nós mal nos apercebemos dela...

Viva la revolución!

Viva la paranoia!


quinta-feira, 13 de junho de 2013

Sobre cidades apavoradas, atrizes com medo e civilizações burras


O primeiro assalto que sofri foi aos 13 anos. Minhas riquezas, num tempo em que celular era coisa de executivo ainda, resumiam-se a alguns reais no bolso. Houve quem reprovou a minha falta de reação na hora. Pois muito bem: o último foi com uma arma prateada na barriga e o prejuízo foi certamente maior. Hoje não se exige mais reação – nem da vítima e até certo ponto nem da polícia.

Vou falar aqui enquanto cidadão de Fortaleza e do Brasil. Existe um medo que se sente no ar, é quase palpável, é visível nos olhos das pessoas na rua, onde qualquer gesto menos suave – os passos de uma pessoa correndo apressada, o barulho de uma motocicleta que se aproxima, um modo de se vestir mais descuidado – e o coração já aumenta estrategicamente o número de batimentos. A vontade de fugir dispara várias vezes ao longo do dia, esteja vc a pé, dentro da sua bolha de metal de quatro rodas ou até mesmo parado, na sua casa ou no trabalho. A sensação de insegurança é absurda e patética, beira a paranoia e faz de todos nós ratinhos medrosos que se mordem uns aos outros ao menor sinal de fumaça no labirinto...

Sim, a situação é crítica, os tempos são de sangue, de barbárie, etc. Mesmo descontando o exagero da mídia que insiste em fazer crer que o mundo é dor e dor e dor, ainda sobram muitas provas de que já houve sim outros tempos em que morrer por um objeto era algo muito menos possível de acontecer.

Pois vamos procurar um culpado para o apocalipse? Pois sim. Dependendo de com quem vc converse, as respostas vão variar das fáceis e óbvias às mais ponderadas e até esquisitas. Segundo os nossos telejoranais – que são conhecidos, claro, por sua imparcialidade essencial – a culpa é daquelas pessoas pobres, que se escondem naqueles bairros feios, verdadeiras fábricas de criminosos... Me pergunto se um dia ainda vão fazer uma reportagem pra mostrar como os fetos que um dia vão virar bandidos e marginais já apresentam, dentro do útero, uma cor meio avermelhada e unhas e olhos crescidos, além de proto-chifres e a ponta de um rabo no cóccix?

Pois sim, essas pessoas que, do nada, enquanto refletem sobre a vida, sentados no banco da escola bem equipada, construída com um dinheiro que nunca foi roubado ou desviado, do nada, decidem, como quem escolhe uma profissão: “Vou virar ladrão. Acho que o mercado oferece boas oportunidades. Além de tudo, sempre foi o meu sonho, subtrair objetos alheios e ser preso – sim, vou ser ladrão!”

Vai dizer que vc nunca pensou em ser um serial killer? Mas claro, trabalhar e estudar pesou mais na balança...

Antes que me acusem de defender o diabo (ou deus), podem ter certeza que não penso com amor no senhor que roubou meu celular apontando uma arma de fogo na minha barriga. Nem ao rapaz que me puxou a mochila há sete anos e levou dinheiro e documentos, nem tenho extamente pena dos que assaltaram a minha amiga cinco vezes; nem rezo pelo rapaz que ameaçou minha irmã mais nova com uma faca na barriga; nem por aqueles que mataram pessoas mesmo depois de terem em mãos dinheiro, celulares e joias... NÃO.
Mas sinceramente, não esqueço que poucos seres humanos escolhem, de forma clara e consciente se tornar escória da sociedade. Não deixo de pensar que os melhores Jereissati, Gomes, Bezerra, Silva, etc, se criados numa pobreza extrema, sem acesso à educação e toda hora bombardeados por uma propaganda que grita que ele ou ela tem que ter o melhor celular, o melhor tênis, a melhor roupa, também não resisitiriam muito diante de convites a conquistar objetos por meios invalidados pelo sistema econômico (pelo menos para pessoas, já que para corporações e governos a ética e as leis são outras...).

Escolher a mera punição como solução é fácil e exige pouca inteligÊncia e pouco planejamento. Mas qualquer pai ou mãe sabe que punição não basta – punição sem educação é um tipo negativo de educação: vc cultiva o ódio e o rancor. Vide nossas penitenciárias: seres humanos amontoados, fermentando em porões sujos como um vinho envenenado que em breve vai ser liberado em forma de bandidos graudados em tudo aquilo que APAVORA a nossa cidade... Nossas peninteciárias punem – mas só punem – e mal – criam eternos odiadores de tudo o que não for crime...

Fortaleza está apavorada. Sim. Mas qual Fortaleza? Só o ingênuo rodeado de borboletas e luz do sol acha que Fortaleza só é uma. Há uma fortaleza periférica que vive há décadas apavorada – mas e daí? Era só aquele povo da favela mesmo... Mas agora não, agora sim é um absurdo – o povo da favela tá invadindo a Aldeota, um povo que rouba, que mata, que não trabalha... tá todo mundo APAVORADO! Pense logo, pense rápido: solução? Contratar mais policiais despreparados para matar o maior número possível de pessoas “marginais” – em outras palavras, jogar mais fogo nessa guerra entre Aldeota e favela. É como nos video games... A luta do Bem contra o Mal... enquanto que uma boa parte do dinheiro dos cidadãos (favelados e aldeotenses) é desviado e vai parar... adivinha em quais bolsos? Nos do povo do Bom Jardim, Autran Nunes, Barra do Ceará? Jura?


Eu respeito muito as emoções dos outros. Quem sou eu para ousar ir contra o medo e o horror e o ódio de uma mãe que perdeu um filho num assalto ou situação parecida. Não quero essa dor e me compadeço com todas as pessoas que sofreram esses reveses urbanos terríveis.

Mas a parte em que a mãe pega uma arma (via policial doido com síndrome de justiceiro) e sai matando “marginais” que não tiveram escola ou trabalho porque o marido dessa mãe ganhou um dinheiro por fora por meio de superfaturação em processos fraudulentos... Essa parte entra na contagem da marginalidade TAMBÉM.

Um sonho: ver as pessoas não-marginais e apavoradas protestarem contra alguns de seus parentes políticos, que nos roubam e desviam o dinheiro dos nossos impostos todo santo dia, e direta ou indiretamente são responsáveis por boa parte dessas mazelas que nos apavoram a todos e todas.

Outro sonho: poder sair de casa sem ter que correr olhando para o lado igual a um psicótico, com medo de ser assaltado ou morto, ou as duas coisas.


Viver numa cidade considerada das mais violentas do país é apavorante – mas viver numa guerra suja e de fachada entre cidadãos que se odeiam, enquanto políticos corruptos assistem a tudo como num estádio romano? É mais apavorante ainda.