quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Sobre vídeos de reação a vídeos

Dentre as milhares de coisas novas que surgem com a internet, algumas certamente são melhores candidatas do que outras a nos acordar no meio da noite, suando pencas, olho regalado e gritando “Nãaaaaao!!!”. Uma dessas entidades exóticas são os “vídeos de reação a alguém ou a alguma coisa” que pululam no youtube.

O que leva um ser humano a registrar em vídeo a própria reação diante de alguma música ou show ou whatever, e postar isso online pro mundo todo?

Narcisismo é uma das primeiras respostas, assim como falta do que fazer; apesar de limitantes e limitadas, parece que, até certo ponto, tais repostas procedem. Presumir que há interesse pela própria reação diante de algo, nos dá mesmo o direito de pensar em uma supervalorização de si mesmo. Vide os próprios vídeos: há, nos gestos e nas palavras, um clima subentendido de que a opinião do autor do vídeo importa muito, a ponto de sua percepção sobre algo ter uma grande chance de ser capaz de modificar a percepção de outras pessoas sobre esse algo. Gravemos essa conclusão para já já.

Porém, a questão mesmo talvez devesse ser: o que leva uma pessoa a assistir as caras, bocas, risos, palavrões de um desconhecido ou de uma subcelebridade diante de um outro vídeo?

Antes de soltarmos com tanta facilidade a palavra “idiotice”, pensemos mais alto, pensemos na complexidade da realidade, pensemos com amor no outro e em suas motivações. Afinal, é fácil demais carimbar como estúpido ou inútil algo que não entendemos, ou, principalmente, que não temos tempos pra entender.

Resultado de imagem para amelie poulain cinemaLembremos de Amélie Poulain. Sim, aquela do fabuloso destino, do romantismo pós-moderno, das mãos nos sacos de grãos e… do cinema lotado aonde ela vai… para quê? Para asssitir as reações das pessoas ao filme! Pois muito bem, parece que essa atividade não é tão sem sentido assim, né?

Ninguém aqui vai escrever textões sobre a natureza humana, sobre o instinto de manada, sobre a volatilidade extremas de opiniões e ideias no mundo online, nem sobre a ansiedade gerada pela falta de conexão que, paradoxalmente, surge da hiperconexão promovida pelas redes sociais… Aliás, temos que falar de conexão sim para entender a natureza cósmico-quântica desses vídeos aparentemente apenas fúteis: conexão afetiva e legitimação estética, é disso que pode se tratar a coisa toda.

Os reagentes de vídeos, em sua natureza, não seguem um padrão fixo – não são nem sempre de países ricos ou hegemônicos, nem de ume certa cor de pele nem de condições sócio-econômicas estritamente definidas. Porém, no contexto brasileiro, parece que há uma certa preferência por Europa e EUA: pelos “gringos”, que, por motivos que não vamos discutir agora, não incluem asiáticos nem africanos… Duvido muito que alguém, na tradição de “vídeos de reação”, vá buscar no youtube por “reações de uma congolense a Pabllo Vittar”, ou “dona de casa afegã reage a Anitta”… Não que não seja possível, mas se acontecesse, quase que certamente seria porque a dona de casa era desdentada ou usava burca e levava uma queda, ou porque a jovem congolense é extremamente exótica – ou seja, não seria a reação em si dessas figuras que gerariam visualizações, mas aspectos outros.

Resultado de imagem para solidão onlineAo se pesquisar por vídeos de “gringos reagentes”, o desejo é saber o que essas pessoas (mais ricas, mais bonitas, talvez mais inteligentes, falantes da língua dos ídolos pop vendidos e baixados aqui) pensam daquilo que nós (mais pobres, que falamos português e moramos nesse país de merda) achamos bom,  massa e legal. Considerando que a idade das pessoas que gravam e veem os vídeos de reação a alguma coisa não deve passar dos trinta e pouco, dá pra pensar sim em algo como “Ah, se aquela galera gosta, então deve ser bom mesmo” – e, pronto, o vídeo sobre o qual se tinha uma opinião dúbia, ganha o selo de aprovação do desconhecido que sorriu em inglês fazendo sinal de legal com o polegar.

Mas há outra faceta aí, e essa mais simples e evidente: a vibe voyeur que virou epidemia all around the world. Embora o Big Brother nos tenha iniciado no questionamento e na compreensão do tamanho desse desejo de ver a intimidade alheia que todos nós temos, ninguém esperava que vídeos mostrando o gato alheio miando, os filhos alheios indo ao parque, jovens dançando na boate etc (não citemos as coisas mais esdrúxulas e mórbidas, como pessoas defecando em supermercados e adolescentes se matando ao vivo), se tornariam uma doença incomodamente curiosa e incrível. Nesse sentido, as caras e bocas de uma youtuber holandesa ou de um jovem espinhento americano se tornam compreensíveis: é mais um ser humano sedento por contato humano mostrando sua intimidade diante das caras anônimas espalhadas pelo globo.

Resultado de imagem para youtuber holandesa nienkeOu seja, não é só idiotice: é vontade de ver suas próprias emoções no rosto de um desconhecido, é não se sentir sozinho no seu gostar ou desgostar – Amélie Poulain total. É também ter – ou fingir ter - tempo sobrando, e ainda, precisar que um desconhecido, por ele ser europeu ou americano, ou branco, ou inteligente, ou legal, ou modinha, legitime suas ideias e opiniões com caretas, palavrões ou expressões de apoio ou fofura.

E pra terminar sem realmente terminar: seriam os youtubers reagentes a nova crítica não necessariamente especializada? A crítica escrita, aquela com argumentos e reflexões longas e, não raramente, chaaaaatas, estaria sendo substituída pelos simples, simpáticos, impressionistas e fofos “ vídeos de reação”?

Pra terminar mesmo: será que alguém já gravou um vídeo de reação a blogs antiquados de textos longos, densos e confusos? O próprio autor gravar vale?


The end.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

O humanismo utópico político de Designated Survivor

Resultado de imagem para designated survivorNum mundo de Trumps, Têmeres, Macrons e Kim-Jong-Uns, um presidente humano, honesto, simples, inteligente, amoroso e legal é o sonho de consumo de todo mundo. E, pior que é só um sonho mesmo… Esse é Tom Kirkman  Kiefer Sutherland, o cara que estrela um curioso seriado produzido pela ABC americana e que rola no Netflix, a conta gotas: um episódio por semana.

Tom Kirkman é aquele amigo gente boa, com quem você pode contar sempre. Ele não mente, não trapaceia, destesta políticos corruptos e oportunistas, e governa o país mais poderoso do mundo(até agora). Ok, mas, mesmo num seriado, é de se perguntar: como ele, sendo essa alma boa e cândida, chegou lá na cadeira de presidente? Obviamente que não foi por meio de um processo eleitoral cheio de alianças toscas, de propagandas agressivas e ataques baratos, como vemos no mundo todo. Seria preciso formatar todo o governo americano... e foi isso que aconteceu: um mega-atentado tranforma a Casa Branca em pó e, com ela, os nomes mais importantes da política americana, incluindo o presidente. A constituição dos EUA prevê a existÊncia do Designated survivor, o sobrevivente designado, alguém que deve assumir a presidência do país em casos extremos. Pois Tom Kirkman era um designated survivor, e voilà: um joão ninguém, o seu zé da esquina toma posse da cadeira mais poderosa do mundo... Ele era um secretário de alguma coisa, um cargo semi-insignificante, do qual tinha sido demitido, aliás, pelo próprio presidente antes de este morrer no ataque terrorista.

A questão é: passando por mil e um percalços, desprezo, dúvida do povo americano, ódio dos políticos que se recusam a serem liderados por um desconhecido, o secretáro de alguma coisa vai conseguindo provar, ao longo dos episódios, que pode sim tocar o barco e mandar na p*rra toda, e se transforma num presidente respeitável e eficiente, e, sobretudo, como já disse, humano.

Resultado de imagem para tom kirkmanA personalidade empática de Kirkman, seu caráter, seu sorriso bobo, seu otimismo, sua fé na humanidade e suas saídas geniais diante de crises, no começo, causam dúvidas em quem começa a acompanhar o seriado; mas depois têm um efeito apaziguador de… esperança. Apesar de a história ser muito bem contada, de personagens interessantes e fortes, em alguns momentos a ação beira o fantástico: Kirkman é legal demais, as coisas se resolvem bem demais, os empregados imediatos dele são eficientes (e humanos) demais também… Porém,  exatamente como um filme romântico, ou um drama choroso mas bem construído, a história do sobrevivente designado cativa e dá esperança. Sim, pois apesar de se tratar de uma visão utópica de uma pesonalidade política, é algo que faz bem ver, que chega a inspirar, em algumas cenas, de forma emocionante. Nesse sentido, Designated Survivor é o exato oposto da quase moribunda House of Cards: o desespero e o nojo que Kevin Spacey nos deu, Kirkman compensa com uma dose de humanismo que, mesmo você não engolindo, faz bem pra alma (você também não acredita que a Elsa ou o Nemo existem, e achou fofo do mesmo jeito).


Então, veja. É o tipo de seriado que conduz seu pensamento em direção a coisas boas – que é algo de que realmente precisamos nos últimos tempos.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Encarando o abismo cósmico de Cixin Liu

Se você é do tipo de pessoas que, como eu, olha para o céu noturno como quem mergulha num oceano infinito e desconhecido, em busca de sensações semi-místicas, sentimentos profundos de reverÊncia à grandeza do cosmos ou À nossa pequenez, não leia Cixin Liu. Cixin Liu: esse bruxo chinês, que transformou meu céu estrelado cheio de promessas de novos mundos misteriosos e talvez habitados por seres evoluídos e sábios, num abismo de breu e morte sem fim, o qual, ao ser encarado, te encara de volta com olhos de terror…

Cixin Liu é um escritor chinês que tem sido aclamado como o maior nome da ficção científica chinesa, e um dos maiores nomes da literatura do gÊnero no mundo todo. Quem leu Arthur Clarke pode ter uma ideia do que esperar das histórias de Cixin. Mas apenas uma ideia.

Ter nascido numa cidade pobre da China e ter crescido num período histórico de seu país que combina crescimento econômico vertiginoso com transformações políticas e sociais violentas, deixa seu rastro na vida e na escrita do autor. A grandeza das paisagens, a contagem de longos períodos de tempo, a preferência por caracteres solitários que passam por mudanças profundas e redentoras, a desconfiança do estrangeiro e o cinismo deste, o heroísmo em prol de algo maior – são elementos que orbitam os sistemas do universo desse escritor incrivelmente criativo e sensível. Já se apontou o destacado lugar da estética no mundo de Cixin Liu: não se trata apenas de tecnologia hard, de cenas de guerra mais que épicas, de sequências de eventos super intrincadas que atravessam séculos sem perder sua lógica rigorosa – o mestre chinês sabe pintar bem cenários e objetos – como se Caravaggio pintasse quadros na estética hiperrealista…

A grandeza cósmica romÂntica mencionada acima vira um abismo de horror e desconfiança nas tintas literárias de Cixin. E apesar da sombra que ele joga na experiÊncia cósmica individual, isso faz mais é ampliar e engrandecer a visão que se pode ter do universo, sob uma perspectiva científica. O cara ousa propor soluções hipotéticas pra vários mistérios da ciÊncia e da cosmologia atual: por que o Bing Bang resultou exatamente no mundo como é hoje? Por que até agora não entramos em contato com seres de outro planeta? O que nos reserva o futuro para nós, enquanto habitantes de um pequeno planeta em vias de inutilização por seus próprios moradores?

Não, Cixin não é romÂntico – não no sentido clássico. A desesperança existencial cósmica é apenas compensada por um tipo light de esperança nas habilidades do ser humano de pelo menos postergar seu inevitável fim, construindo uma vida próspera e satisfatória por meio do desenvolvimento científico. O encontro de um imigrante iletrado com o físico Stephen Hawkins é uma das cenas doces com que o autor nos presenteia: doce pero não bobo. O auto-sacrifício pela mulher amada, que resulta numa metamorfose através dos séculos, que, por sua vez salva a humanidade do esquecimento definitivo, também afaga o coração do leitor, tão obscurecido pelas trevas que nos alimentam nas páginas de Cixin…

Infelizmente, há poucos livros do autor chinês traduzidos em português. O primeiro escritor de língua não inglesa a vencer o oscar da literatura de ficção científica ainda é um pouco inacessível ao leito brasileiro. Mas pra mergulhar nos espelhos fantásticos de Cixin, O Problema dos TrÊs Corpos, que soa muito como título de livro da Agatha Christie, é um ótimo começo. Trata-se do primeiro livro de uma trilogia estonteante, inteligentíssima, inovadora, instigante e inspiradora. Uma saga cósmica, quÂntica e dimensional de tirar o fôlego. Há livros que mudam seu jeito de pensar, e Às vezes, de viver: esse é um deles. Compartilhar algo assim, como disse Jorge Luis Borges, é um dos melhores presentes que se pode dar a alguém.

Leia Cixin Liu, apaixone-se mais ainda pela grandeza do cosmos, deguste da beleza das aventuras científicas, do medo do abismo, dos sussurros que se ouve quando ele encara de volta…