Não, se vingar não é uma coisa
bonita – foi assim que aprendi e assim que tento ser no dia a dia... Claro que
depois daquele tapa na cara dado de forma cínica e injusta por aquela pessoa
que te detesta sabe-se lá porquê, a vontade é de chorar um pouco, engolir o
rancor momentaneamente e depois expurgar
tudo em forma de um ritual vingativo preparado na penumbra com gargalhadas de
bruxa de desenho animado...
Apesar de a vingança matar a alma
e envenená-la, como diz o seu Madruga, ela pode sim trazer prazer – que atire a
primeira pedra num cartaz de um filme de Tarantino quem nunca cometeu um ato,
por menor que tenha sido, de vingança e no fim, tenha se sentido melhor – pelo menos
aparentemente...
Mas se você é uma pessoa que
tenta antes de tudo viver uma vida de paz e amor, os filmes desse artista da
vingança americano são uma boa sugestão de relaxamento catártico.
Não sei quem foi que disse que a
vingança é como um ato mágico, pois supõe que ações calculadas e orquestradas
sob um sentimento tal terão consequências ilógicas sobre o estado de espírito
ou sobre a realidade de quem os comete. A equação é simples e até bíblica: olho
por olho, dente por dente. Aliás, se formos nos espelhar nos deuses nossos de
cada dia, seríamos bem mais vingativos do que somos: Sodoma e Gomorra, Jericó,
Apocalipse, Prometeu, etc. A vingança é uma força muito forte, assim como o
medo e o amor. E quem sabe dominar qualquer um deles, ganha um mundo, ganha
olhos e mentes.
É com essa força que anima seres
humanos e deuses que Tarantino brinca – e muito bem, obrigado. Que eu me
lembre, as coisas mais violentas de que fui capaz foram cascudos e empurrões
nos meus amados irmãos (não, nunca briguei na escola); mas não nego os
batimentos cardíacos fortes diante das cenas de pura vingança que o diretor
americano nos oferece numa diversão digna do circis romano. Mas admitamos, não
se trata apenas de apelar ao “instinto” de violência evocável em cada ser
humano (no contexto preciso) – é um pouco mais do que isso (e o quanto “mais”
deixarei impreciso mesmo, já que isso aqui são apenas comentários despretensiosos
de quem acabou de ver um filme legal).
Homem versus mulher, vítima
versus algoz, negros versus brancos. Kill
Bill, À prova de morte, Django Livre – esse foi o último da
lista de “vinganças clássicas”. Claro que a hipérbole está presente em todas as
histórias de Tarantino: a sacanagem que o Bill faz é realmente uma sacanagem;
as meninas perseguidas e assassinadas como animais em À prova de morte são realmente perseguidas e assassinadas; e em Django
Livre, onde um escravo inesperadamente liberto por um caçador de
recompensas alemão se vinga de seus opressores, ele é realmente vilipendiado e
violado em sua humanidade... E eis aí o caminho pra gente entender o poder
diferenciado da vingança em Django se comparado aos outros filmes
tarantinescos.
Estamos falando da vingança de um
povo abusado, torturado, mastigado pelos sistemas econômicos e religiosos
mundiais durante séculos. Estamos falando de milhares de gritos, de litros de
sangue, de toneladas de carne queimada e apodrecida sob os olhos de outros
seres humanos apáticos ou absurdamente sorridentes, bem vestidos e tementes a
deus (não ouso pôr maiúscula aqui pelos melhores e piores motivos). Django,
como símbolo óbvio do escravo africano tratado como coisa e depósito de ódios e
rancores seculares, queira-se ou não, mexe sim com alguma coisa dentro de você –
sobretudo se o tom de pele do espectador for próximo ao do personagem.
Django é fictício, assim como a judia
Shoshana de Bastardos Inglórios, que se vinga dos que mataram sua família
explodindo um teatro cheio de soldados e autoridades nazistas em Paris. É
fictício mas perfeitamente imaginável e possível. Nesse buraco negro histórico,
que são os séculos de escravidão, cheio de sangue e dor e trevas, imaginar um herói
sedento de vingança eliminando um por um os habitantes da Casa Grande é lógico
e aceitável ao espectador.
Não chego a uma conclusão se
Tarantino é um doido que sabe que apenas cria filmes que cutucam a alma das
pessoas, ou se ele se vê como um pregador que divulga sua filosofia da vingança
por meio de suas películas. A primeira opção é a que imagino mais procedente, mas
de qualquer maneira, fazer pensar também é um mérito dele. Em seus filmes, o sentido
de empatia se estabelece desde o começo: a dor, a tragédia e o abuso dos
personagens principais, sejam eles um ex-escravo, uma judia ou uma noiva
abandonada, criam imediatamente um laço com o espectador – o que facilita esse
exercício empático com as figuras sedentas de vingança: “Se eu fosse esse
Django...”, “Se eu fosse a Beatriz...”, “Se eu fosse essa Shoshana...” nascem
na nossa cabeça na hora, e o que completa essa frase é o que Tarantino nos
mostra na tela. No fim das contas, por meio da sede de vingança, Tarantino nos
propõe as doçuras e agruras (sobretudo agruras) de ver a vida através do olhar
do Outro - vamos combinar que isso não é
de se esnobar.
O normal é que façamos algumas
caretas ao longo do filme, sorriamos um pouco, talvez um tanto culpados diante
de uma quantidade não desprezível de sangue que rola, e suspiremos no final,
satisfeitos pela ordem restabelecida pelo ato mágico da vingança. O normal é
que essa catarse sirva – que sirva bem pra nos purificar e nos fazer deixar pra
lá as mágoas e rancores do quotidiano, a fim de evitar saindo por aí matando
Bill ou os senhores da Casa Grande... Até porque, há mil e uma maneiras de
fazer isso – vamos escolher as menos violentas e deixemos o molho de tomate
fazer papel de sangue nos filmes de Tarantino mesmo.