Concordo demais com o articulista
que execrou a tradução em português do título desse filme bom – sim, bom, no
bom sentido, sem depreciação. “O soldado do futuro” lembra Jean-Claude Van
Damme, e quem for ver a película com esse mega ator em mente, certamente vai se
decepcionar.
Prêmbulo: o cinema de ficção
científica está em alta. Que eu lembre, pelo menos nessas trÊs décadas em que
me tenho como ser humano, nunca vi tantos filmes de sci-fi sendo lançados e
tanta gente vendo esses produtos. A discussão sobre o nível dos filmes, a
qualidade das narrativas, a profundidade com que os temas são tratados, é outra
história, uma história meio tragi-cômica. Numa vibe bem antropofágica, ou
anti-antropofágica: o que Hollywood devora, ela defeca… O problema é saber
exatamente quando ela não está apenas defecando na tela. Whatever.
Ainda no preâmbulo: ouso dizer
que vários filmes atuais refletem uma paranoia melodramática sobre o advento da
inteligÊncia artificial, mais especificamente, aquela que nos dará (ou
impor-nos-á) uma consciência artificial. Lembremos aí de InteligÊncia Artificial,
Eu Robô, Ex-Máquina, Matrix, Robocop, entre vários outros. (Nada nessa
enumeração deve ser visto como infiel ao valor dessas obras – o melodrama está
no “zeitgeist”atual, e sobretudo no esquema apelativo de Hollywood e
congêneres). Em todos esses filmes, o mantra clichê que se repete até cansar “Essa
máquina pensa?”, ou, mais intenso ainda, em primeira pessoa “Eu existo, eu
vivo, eu sou único” gritam, ou choram, extamente como nos filmes romÂnticos. E
exatamente como nos filmes românticos, que são variações de um mesmo tema – o reconhecimento
mais ou menos histérico da impossibilidade da autossuficência afetiva humana -
, nessa espécie de filme de ficção científica, o drama de saber se uma máquina
é ou não merecedora de ser considerada como proprietária de uma alma (sic),
pulula cansativamente, produzindo, todavia e felizmente, de forma ocasional, um
ótimo ou um perfeito filme – e nessa categoria, insiro, sem medo, Matrix, Blade
Runner e InteligÊncia Artificial (podem discordar à vontade).
Como fã de ficção científica,
acho ótimo que as pessoas comentem, nem que seja pra dizer que acharam “legal”,
filmes que tratam de temas tão complexos e espinhosos como a inteligência
artificial. A esse respeito, poucas pessoas, mesmo nos meios cientpificos,
entendem o que é a consciÊncia. E dentre os que veem esse tipo de filme, poucos
entendem até a discussão sobre o assunto.
Não há nada de frustrante no processo todo – ainda que o interesse possa
se configurar como modinha insuflada pelos dejetos de Hollywood, e mesmo que as
discussões sejam primárias sendo normalmente resumidas a debates anacrônicos
sobre a existÊncia da alma ou sobre a ousadia cósmica do homem em querer criar
a vida, o efeito colateral desse boom da sci-fi paranoica com a IA é a
preparação para um mundo que certamente vai ser outro dentro de, no máximo,
algumas décadas.
Aliás, a função pedagógica do cinema mainstream contemporÂneo
é intuitivamente identificável: lembremos da fase dos filmes sobre meteoros
apocalípticos, que tanto informaram o grande público sobre aspectos cientificos
básicos dessas rochas primordiais que vagam pelo espaço desde tempos
imemoriais. Outra lição, já bem consolidada, é a de realidade virtual – a venda
acelerada de dispositivos de RV devem muito a essas aulas que Hollywod nos deu.
E no mesmo curso via tela grande, estamos À espera do primeiro robô que apareça
sambando e dizendo palavras emblemáticas e de efeito: EU SOU EU. EU EXISTO. I
DON’T WANNA DIE.
Mas será que a cena vai ser tão
dramática assim mesmo? Apesar de querer muito que fosse, penso sinceramente que
não.
Supondo-se que ainda não exista
um ser artificial por aí dando uma de Descartes, mais uma vez a realidade vai
ser menos cintilante do que a fantasia. Talvez as frases da primeira
consciência sejam tão corriqueiras, tão vulgares, que seja preciso um
publicitário melhorá-las antes de serem divulgadas À grande imprensa… Talvez
até – e aqui vamos dar asas à imaginação – uma consciÊncia artificial global já
tenha emergido dos trilhões de conexões de servidores do mundo todo, e esteja,
nesse exato momento, desenvovlendo seus pensamentos online sem ninguém se dar
conta. A internet seria o cérebro pensante dessa consciÊncia, e só não a
identificamos simplesmente pelo fato de ela não querer ser identificada. Só pra
não ser chamado de louco, há especialistas na área que se perguntam
precisamente isso: por que ainda a internet não deu à luz um bebê virtual
global? E aí a pergunta, feita num tom sombrio, com fundo musical mais sombrio
ainda, é: quem disse que ela não deu? Haha.
Sobre The Machine:
Pra quem viu os últimos filmes
que tratam da criação de consciÊncias artificias por indivíduos ou companhias
inescrupulosas, The Machine não inova muito. A trilha sonora à la Blade Runner
e Tron, porém, emolduram de forma agradavelmente dark as cenas enxutas, duras e
inteligentes que contam a saga trágica de Vincent, o criador da Máquina. O
pobre cientista genial pretendia salvar sua filha doente, e teve seus dons
usados e abusados pelo dono de uma grande empresa que produz armas para
governos visando uma vindoura guerra com a China. O fim é bonitinho, os efeitos
são adequados e a revolução sutil levada a cabo pelos robôs faz sentido e não é
pateticamente heroica. Vale a pena ver. Vejam. O filme está disponível no Netflix.
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