terça-feira, 24 de abril de 2012

Blá blá blá


Blá blá blá

Dalí
Vejo o mar no céu e peixes a voar
A fazer borbulhas de amor à luz do sol
Filtrado em nuvens de drama que inflam
Como os momentos gulosos
De estarem sendo, de quererem ser.

Nem pergunte.
O céu é uma exclamação só
Os vermes também
E a canção em ultrassom
De cetáceos no ventre escuro à noite de sal
Só afirma, só diz longo sim
Puro, límpido, agressivo e faminto sim de Nietzsche.

Não fui ontem que nasci
Foi sempre
E embora rinocerontes sempre também passem pisando
Em insetos esmagados por engrenagens de relógios existenciais
E em seres humanos cegos e surdos ao óbvio do chão de pó tão eloqüente
Vale a pena crer e querer
Que tudo tenha seu secreto sentido
Escondido, invisível, intangível, inodoro, silente, ironicamente contente
De nunca ter sido achado...

Tudo termina com risos (de alguém)
E relógios derretidos.


domingo, 1 de abril de 2012

A mesma língua

A mesma língua


     Queimou-me o café a língua, pensou, feliz sobre a dor esquecida pelo deslizar articulado da frase.

     Queimei a língua, pensava sua boca, cálido vão de vermelho oculto que se mostrava nas palavras sopradas gratuitas sobre a mesa.

     Esta era um círculo de conversas dentro de outro círculo de conversas, pedidos e ordens.

     Ele com a língua ardente. Sentiu-a como se se desmanchasse um pouco. Certificou-se dessa ilusão contraindo o músculo em auto-análise e depois comunicando a todos que: queimara a língua.

     Um silêncio de diálogos não interrompidos e uma gargalhada estrangeira e inconsciente de queimaduras vieram numa resposta mural que ele, depois de um instante de espanto desprezado, viu finalmente que era rica de permissões e concessões. Que se alegrasse pois, dessa concessão de fazer e estar: estava só, mudo, ignorado por enquanto, livre para fazer-se em pira todo o seu ser a partir de sua boca, se quisesse.

     Pois muito bem, engoliu com uma saliva mais quente com gosto de café a sua liberdade dentro do círculo e ordenou sucinto à sua boca que comesse. Ela, que nem era dessas coisas de devorar ávida o mundo, obedeceu, e demais, como ele queria de fato, e o fez como se boca de selvagem felino fosse e não de primata doméstico, e visse no pão com queijo e presunto um pescoço liso e suculento de gazela.

     Mastigou plenamente diante de uma câmera, muito intrusa, ali escondida, e mal, a supervisionar a segurança do repasto geral.

     Mastigou como uma vaca automática. Se um de seus amigos porventura descesse de suas gargalhadas e o mirasse com súbita esperança, certamente se surpreenderia sem saber se ele era como todos e engolia de vez em quando o bolo da boca ou se tudo era uma só mastigação ininterrupta e que sua boca era bruta e só enviava tudo ao estômago de uma vez, não em prestações.

     De fato, uma vez se dignara a contar, e sua mandíbula, soube, triturava o alimento quarenta vezes antes de dispensar a sofrida comida esbagaçada a seu destino de dissolução e transmorfia.

     Às vezes cansava de mastigar. Ficava exausto. Mas como gozasse da liberdade de não existir naqueles instantes de alheamento do grupo, com apenas metade do número assinalado, deixou que dum escuro quente ao outro, ácido, deslizasse o que havia sido parte de um singelo pão com queijo e presunto, e de uma gazela africana.

     Viu-se então esvaziado de sentido, terminado o processo de mastigação sem cansaço. Com nojo, pensou mesmo em camelos e vacas, e cogitou em que se pudesse, convocaria o ido conteúdo a outras vinte vergastadas. Confundiu-o um pouco a dúvida sobre a capacidade de ruminar do camelo...

     Mas, sim, esvaziado ficou, porém não tanto tempo. Apalpou a boca com a língua, e enquanto buscava não se sabe o que nos vãos e desvãos de dentro com o visco do músculo, ao mesmo tempo os olhos respondiam com uma busca externa isenta de fins, a circular pelo recinto híbrido de fast food e comida lerda.

     Tranqüilo momento de mundo a se passar se passou. Seus amigos voando nas palavras, araras, flamingos matraqueando sobre um verde e alegre lago, ele o hipopótamo feito em sapo, e em nenúfar, e em mosquito, e em brisa, e em águas boas...

     E então houve um cachorro.

     No ir e vir das gentes e gentinhas e vozes e vozezinhas e cheiros de carboidratos diversos, vinha e ia o cachorro.

     Ele lá dentro, seu rosto de símio perdido e medroso, com uma busca sem fim de uma língua queimada, entre os arbustos de ombros e cabeças dos amigos a mirar.

     Ele lá fora, a língua de fora, fora sua cachorrice expressa no trote quase eqüino, uma longa cor de marfim, uma atitude cristã de procissão apressada sem deus ou santo à frente, a noite amarelada do poste a circundar-lhe a existência. Era um cachorro extremamente completo, notou.

     Porém numa imagem incompleta. Pois não tinha ares de mendigo canídeo, opunha mesmo à sua posição humilde na arrogante escala da evolução dos seres animados uma arrogância tal que, em sinal de mútuo respeito e aprovação, riram um ao outro, contentes sobre os dentes: é, é assim mesmo.

     Mas parecia mais uma arrogância de cão de dono rico, pensou, decepcionando-se.

     Todavia sem dono ia o cão. Lindamente sem dono e sem cego. E a isso devia-se a incompletude, como percebeu em sua apreciação, nem sonhando com a mosca preta encarada pelo olho preto e curioso da câmera, pousada no queijo e sua ponta desfalecida na massa do pão: era um cão que, em seu perfeito marchar de cão de dono rico, parecia que era conduzido por alguém, ou a alguém conduzisse: um dono ou um cego invisível.

     Em seguida refletiu sobre a limpeza do cachorro orgulhoso e da sujeira do centro da cidade. Mais uma falta no cão: a sujeira. Outra ainda: o abandono. Assim era um cão sem cego e sem dono e sem afinidade com as ruas do centro. De certo, pois, era um ser de outros ecossistemas, outros lugares, talvez de outro planeta. Fugitivo, desertor, invasor, quem sabe. Muito senhor de si, esse cão, refletiu. E mais uma vez riu, supondo a metáfora de um mundo de cães senhores de metrópoles sujas com homens a ladrar e a serem coletados em carrocinhas.

     Quis aprofundar-se no mistério do cachorro indevido a desfilar limpo na calçada imprópria – e vejam, tantos pães e guloseimas nas vitrines e ele nem olhava! – mas uma voz ordenou adoçante...

     Sua atenção vacilou e num espaço de um flash o cachorro inexistiu, o que o irritou. Mas o trato que vinha de desde antes da língua chamuscada do café, e da verborragia dos amigos era de que ele talvez não existisse ali (ele que de fato nos últimos tempos realmente não tinha estado ali no círculo), e com uma cara de máscara abobalhada disse, sem abrir a boca, com indizível abuso, que não incomodasse sua ausência na mesa com um pedido de adoçante, ora – que respeitasse as leis, e que além do mais havia o cachorro e seu enigma.

     O adoçante jazia à sombra dos guardanapos, como observava o canto do olho desprendido da atenção ao cão.

     A seguir, quando toda a atenção reuniu seus pedaços e tentou recompor o olho e olhar, não houve mais cão: ido, sumido, talvez nem havido.

     Só o casal de idosos a comerem hambúrgueres de carne de bode – os animais moídos e formatados dentro de duas fatias de pão se exibiam deliciosos num enorme cartaz promocional – ofereceu-se à sua atenção abandonada pelo cachorro. No entanto a mosca ainda preta instou-o ao retorno e por ela chegou à mesa, sem interesse algum, como alguém que chega ao ponto de ônibus e o transporte também chega cronometrado, inglório, uma dádiva idiota, pela qual ele nem agradece.

sábado, 24 de março de 2012

A Meta (2)

(...) O trabalho no jornal não o cansava tanto quanto as caras que via e tinha que ver. Na frente de uma e outra algumas vezes dissera insensatamente mais do que deveria ter dito e fora devidamente punido. A meta talvez tivesse a ver com isso, com finalmente largar o jornal e abrir a gráfica. Mas os dias sempre amanheciam com demasiada luz, e à beira-mar, suspirava...

Seus amigos, poucos na verdade, o tinham em alta conta como bom cantor e ótimo anfitrião. Algumas noites por semana, a piscina ondulando em azul sob as luzes do jardim, se reuniam em prol de nada mais que de si mesmos. Adriano e Márcia sempre estavam lá, os demais eram rotativos. Adriano “... o imperador, construiu uma cidade e deu-a de presente para Antínoo como prova do seu amor” dizia no dicionário, sonhando,  para amargamente concluir: “desse Adriano eu ganhei um isqueiro mês passado...”. Márcia “tem os cabelos mais lindos desse planeta, os olhos mais suaves e tristes e uma imprecisão nos gestos que encanta e causa riso. Se eu fosse mulher, queria ser o contrário dela. Mas eu a amo”.

Conversavam sobre livros, filmes, pessoas e coisas. Volutas não faltavam. Quando achavam por bem que houvesse o vinho, as alegrias se hipertrofiavam e as palavras soltas se multiplicavam. “Existência”, “dor” e “amor” não faltavam - pois isso foi há quinze anos, quando ainda havia muita esperança. Adriano às vezes tocava o violão e Ele cantava... por falar nisso, assim se definia Ele no Dicionário: “Sou Ele: desse jeito, simples. Meu nome não diz nada de mim – talvez diga de meu pai, ou da minha mãe, que foi quem o escolheu, mas de mim, nada. Palavras, brutamente falando, são sopros articulados. Como esperar que alguma verdade haja em vento que sai da boca e do nariz? Conheci um rapaz louro que se chamava Eduardo – um nome cujo som arde em chamas de poder e paixão na minha alma, um rapaz lindo... Mas nada havia de Eduardo em Eduardo. Talvez José, ou Nero, ou Lúcifer. (...) Já entrevistei um anão, que sustentava três filhos rolando no chão da praça no meio do povo, e que se chamava Julius César de Jesus (...) Meu nome é como o de Deus - é só pra dizer que eu sou - : um mero vocativo...”


Nessas noites de alegria Ele cantava as coisas que ouviam. Sua voz era grave e de uma potência inesperada. Uma vez, provavelmente já perto do sol nascer, falara de um cantor indiano, o qual aprendera a traduzir em música pura o trinado de pássaros, o coaxar de sapos e o grunhido de macacos. Segundo Ele, tais músicas, além de revelarem um talento muito mais que artístico, místico, tinham apelo hipnótico e quando reproduzidas levavam o público ao êxtase – geralmente formado por pessoas da área da música de vanguarda, artistas, intelectuais. “E mais, Ramadranath não apenas traduz o som desses animais em música, mas em letras...”

No meio dos risos que causou, Ele também riu, insistindo porém que falava a verdade, e que tinha, como prova, algumas das canções do cantor e intérprete indiano guardadas num disco. “Os nomes das canções são tipo ‘Clamor de meus filhos’, ‘Onde está o meu nenúfar?’, ‘Banana sapiens’, ‘A rã que ri no rio dos homens’... Se o Adriano for comigo até à sala procurar o disco...”

Márcia nesse instante baixou os olhos mas Ele não viu.

Antes de levantar e entrar em casa acompanhado do amigo, o vermelho de uma cinza se apagando no cinzeiro sobre a mesa de palha por um instante lhe entristeceu pateticamente...

Havia na parede da sala um quadro onde uma jangada encalhava na areia e um pescador de rosto oculto na sombra do chapéu dobrava a rede. Numa mesa três vasos em silêncio de barro se abriam rubros. Sentados no tapete – em cujos fios dois chineses do campo alimentavam duas eternas aves - Ele espalhou discos e palavras nuas, finalmente claras para que o outro ouvisse...

Mas no silêncio de Adriano as canções nunca foram achadas, nem caminho ou rua alguma foi aberto, muito menos uma cidade...