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domingo, 12 de maio de 2013

Mãe

Gosto da ideia de que todos os dias sejam dias das mães. Mas também acho nobre a ideia de escolher um dia para homenageá-las de uma forma especial - descontados todos os apelos comerciais cínicos.

Entre as várias homenagens possíveis, das mais simples e singelas - como a de comprar uma reles rosa no sinal de trânsito -, àquelas oriundas das entranhas que fazem chorar e rir ao mesmo tempo, a que está mais ao meu alcance é a seguinte.

A de crer, saber e cultivar que nós somos nossas mães - metade do que somos, pele, pelo, sangue, suor, tem os traços vivos do que são esses seres que nos carregaram magicamente dentro de si... Sinto e vivo o fato de ter a minha mãe aqui mesmo, agora, pensando e continuando em mim - e minha homenagem segue esse imperativo de continuar a ser quem sou porque sou ela ao mesmo tempo: e isso com e sem poesia, com e sem biologia. Assim como sou minha avó, e a minha bisavó, e a minha tataravó, e etc.

Mas também nós somos quem nós lembramos - e mãe é aquela que a gente lembra como mãe. Lembro da minha me explicando o azul do céu (e dane-se que ecoe Renato Russo aqui - eu LEMBRO, e essa lembrança é minha), o trovão e a chuva (uma vez sugeri que a chuva fosse o cuspe de Deus, e ela concordou, rindo, pra depois propor outra coisa...). Lembro dela dando o nó no meu sapato no meu primeiro dia de escola. Lembro dela dizendo como era boba essa coisa de dia das mães, mas lembro como ela sorria quando ganhava presente e abraço...

Enfim, enfim, enfim...

Uma mãe é um ser humano. Mas uma mãe é uma coisa infinita onde cada um de nós se formou do nada (meu cérebro nunca vai deixar de travar diante de uma magia dessas...), e como diante de toda coisa infinita, as homenagens são naturais e devidas.

Como a palavra pra se referir ao que eu sinto agora não existe, paro para agradecer, Mãe, por não apenas sermos quem eu e meus irmãos somos, mas simplesmente por sermos.

E lá vai um clichê - mas que está rasgando o peito nesse exato momento: mãe só tem uma.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O Jardim

O jardim


Sou como todo mundo, quando nasci não sabia o que era. No início do começo, minha existência se constituía de um ponto de vida. Vida ínfima. Sem saber de mim o meu derredor todo é que se fazia, a flutuar eu no limiar do pensamento. Tudo escuro, morno, úmido. Aí então, a partir de um momento primordial das coisas e de mim, viver e existir foram se compondo e comutando, em etapas, em cascas. Talvez com assombro eu tenha assistido água e pó me virarem na simetria do plano invisível que governa a terra - mas se o fiz, esqueci. Lembro da música, da voz de trovão, da de vento em flauta ou ira, e também do silêncio mais puro que já houve. Intempéries, emoções da hora, indo a vida e vindo.

Lembro da gênese da minha ousada ingenuidade, que tudo queria, na arrogância de achar que podia mais, apenas por ter podido uma vez, sem querer, viver. Ao longo dos dias e das noites sentia que escalava patamares mais sutis e complexos de possibilidades. Apêndices formavam-se segundo intrincada arquitetura antiga e nova ao mesmo tempo, nunca até hoje superada. Em nada notei mãos de artista, nada da marca individual de uma vontade clara – o que não é juízo, apenas leve constatação. Sei é que entre o mundo e eu há como que um sonho, e o que aqui digo é seu enredo, sem interesse. Pois falo comigo no tom de um rio que a si mesmo murmura águas. E são inexatas as coisas. Por exemplo, o mistério é eu não saber de onde vim: no bico de um pássaro, de uma semente de onde, de origem nebulosa, uma questão sem resposta... Os pássaros voam muito e vão longe, e por não falar a sua língua, fico quieto ignorando rotas e histórias. As flores belamente não se importam, em exército as abelhas de cor em cor trabalham e até à morte dançam...

Desde pequeno sinto e sigo o chamado do alto, modulado sempre pela tenacidade da voz da terra. Cada dia é uma luta, num banho diário de luz, ao sopro do vento morno. A minha fidelíssima sombra, ao chegar do fim do dia, cresce sem tamanho até se fundir com a geral da noite, em infinitos matizes de escuros e sonhos. O dia seguinte vem depois na roda dos ciclos com meu devido quinhão de sombra e luz novamente.

Meus atributos são largos e todos, porque não tenho nenhum. Não sinto a função, se é que tenho uma, por isso me interesso somente no nível que cada momento pede, o qual quase sempre é baixo, ou zero. A solidão me ensina tanto quanto a companhia daqueles com quem casualmente vivo. O silêncio da tarde tórrida me agrada e eu penso muito, muito, muito, suspirando. À noite eu respiro.

Antes, à tardinha, vem meu melhor amigo, com quem falo menos que o que queria, pois nos separa a barreira da linguagem. É uma amizade boa e agradável, no entanto. Na manhã em que o conheci logo vi como era inquieto, agitado, um tanto medroso. Dava a sua voz ao dia o dia inteiro, ávido, rápido. Era como um mundo que fosse acabar no dia seguinte. Sempre o admirei pela leveza e facilidade sua de viver. Ele mesmo, em alguns gestos de asa e cabeça, demonstrava mesmo seu orgulho e um tipo sem peso de altivez por suas habilidades próprias.

Porém logo vi também que poder ele voar pelo jardim e pela mata, solto no vento como nunca poderia eu ser, tinha seu preço: parece que o conheci ontem, mas segundo o que ele diz, em sua memória a minha figura alta e forte, verde, marrom, esteve sempre presente, ou aí figura desde que se entende por pássaro. Surpreso, sondando as histórias de minhas cascas e folhagens, de fato encontro na lembrança, muitas vidas e épocas esparsas; ao longo do tapete da passagem dos anos, milhões de abelhas, bilhões de formigas, besouros, milhares de pássaros e infinitos pardais... e entre estes descubro talvez esse que se aninhou em mim e sobre mim dormita...

Mas o que me importa o que eu não sei? O que me importa se na duração de um dia mil criaturas tristes e felizes riem e choram ao meu pé, na minha sombra? Que valor maior do que a qualidade de cristal candente dessa luz, têm seus sons sem sentido? Em minha volta, como o pardal nos meus braços, os homens montam seus ninhos de pedra, e os destroem, e sem saber como é a vida, vivem-na, assim, sem saber que não sabem...

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terça-feira, 24 de abril de 2012

Blá blá blá


Blá blá blá

Dalí
Vejo o mar no céu e peixes a voar
A fazer borbulhas de amor à luz do sol
Filtrado em nuvens de drama que inflam
Como os momentos gulosos
De estarem sendo, de quererem ser.

Nem pergunte.
O céu é uma exclamação só
Os vermes também
E a canção em ultrassom
De cetáceos no ventre escuro à noite de sal
Só afirma, só diz longo sim
Puro, límpido, agressivo e faminto sim de Nietzsche.

Não fui ontem que nasci
Foi sempre
E embora rinocerontes sempre também passem pisando
Em insetos esmagados por engrenagens de relógios existenciais
E em seres humanos cegos e surdos ao óbvio do chão de pó tão eloqüente
Vale a pena crer e querer
Que tudo tenha seu secreto sentido
Escondido, invisível, intangível, inodoro, silente, ironicamente contente
De nunca ter sido achado...

Tudo termina com risos (de alguém)
E relógios derretidos.


domingo, 1 de abril de 2012

A mesma língua

A mesma língua


     Queimou-me o café a língua, pensou, feliz sobre a dor esquecida pelo deslizar articulado da frase.

     Queimei a língua, pensava sua boca, cálido vão de vermelho oculto que se mostrava nas palavras sopradas gratuitas sobre a mesa.

     Esta era um círculo de conversas dentro de outro círculo de conversas, pedidos e ordens.

     Ele com a língua ardente. Sentiu-a como se se desmanchasse um pouco. Certificou-se dessa ilusão contraindo o músculo em auto-análise e depois comunicando a todos que: queimara a língua.

     Um silêncio de diálogos não interrompidos e uma gargalhada estrangeira e inconsciente de queimaduras vieram numa resposta mural que ele, depois de um instante de espanto desprezado, viu finalmente que era rica de permissões e concessões. Que se alegrasse pois, dessa concessão de fazer e estar: estava só, mudo, ignorado por enquanto, livre para fazer-se em pira todo o seu ser a partir de sua boca, se quisesse.

     Pois muito bem, engoliu com uma saliva mais quente com gosto de café a sua liberdade dentro do círculo e ordenou sucinto à sua boca que comesse. Ela, que nem era dessas coisas de devorar ávida o mundo, obedeceu, e demais, como ele queria de fato, e o fez como se boca de selvagem felino fosse e não de primata doméstico, e visse no pão com queijo e presunto um pescoço liso e suculento de gazela.

     Mastigou plenamente diante de uma câmera, muito intrusa, ali escondida, e mal, a supervisionar a segurança do repasto geral.

     Mastigou como uma vaca automática. Se um de seus amigos porventura descesse de suas gargalhadas e o mirasse com súbita esperança, certamente se surpreenderia sem saber se ele era como todos e engolia de vez em quando o bolo da boca ou se tudo era uma só mastigação ininterrupta e que sua boca era bruta e só enviava tudo ao estômago de uma vez, não em prestações.

     De fato, uma vez se dignara a contar, e sua mandíbula, soube, triturava o alimento quarenta vezes antes de dispensar a sofrida comida esbagaçada a seu destino de dissolução e transmorfia.

     Às vezes cansava de mastigar. Ficava exausto. Mas como gozasse da liberdade de não existir naqueles instantes de alheamento do grupo, com apenas metade do número assinalado, deixou que dum escuro quente ao outro, ácido, deslizasse o que havia sido parte de um singelo pão com queijo e presunto, e de uma gazela africana.

     Viu-se então esvaziado de sentido, terminado o processo de mastigação sem cansaço. Com nojo, pensou mesmo em camelos e vacas, e cogitou em que se pudesse, convocaria o ido conteúdo a outras vinte vergastadas. Confundiu-o um pouco a dúvida sobre a capacidade de ruminar do camelo...

     Mas, sim, esvaziado ficou, porém não tanto tempo. Apalpou a boca com a língua, e enquanto buscava não se sabe o que nos vãos e desvãos de dentro com o visco do músculo, ao mesmo tempo os olhos respondiam com uma busca externa isenta de fins, a circular pelo recinto híbrido de fast food e comida lerda.

     Tranqüilo momento de mundo a se passar se passou. Seus amigos voando nas palavras, araras, flamingos matraqueando sobre um verde e alegre lago, ele o hipopótamo feito em sapo, e em nenúfar, e em mosquito, e em brisa, e em águas boas...

     E então houve um cachorro.

     No ir e vir das gentes e gentinhas e vozes e vozezinhas e cheiros de carboidratos diversos, vinha e ia o cachorro.

     Ele lá dentro, seu rosto de símio perdido e medroso, com uma busca sem fim de uma língua queimada, entre os arbustos de ombros e cabeças dos amigos a mirar.

     Ele lá fora, a língua de fora, fora sua cachorrice expressa no trote quase eqüino, uma longa cor de marfim, uma atitude cristã de procissão apressada sem deus ou santo à frente, a noite amarelada do poste a circundar-lhe a existência. Era um cachorro extremamente completo, notou.

     Porém numa imagem incompleta. Pois não tinha ares de mendigo canídeo, opunha mesmo à sua posição humilde na arrogante escala da evolução dos seres animados uma arrogância tal que, em sinal de mútuo respeito e aprovação, riram um ao outro, contentes sobre os dentes: é, é assim mesmo.

     Mas parecia mais uma arrogância de cão de dono rico, pensou, decepcionando-se.

     Todavia sem dono ia o cão. Lindamente sem dono e sem cego. E a isso devia-se a incompletude, como percebeu em sua apreciação, nem sonhando com a mosca preta encarada pelo olho preto e curioso da câmera, pousada no queijo e sua ponta desfalecida na massa do pão: era um cão que, em seu perfeito marchar de cão de dono rico, parecia que era conduzido por alguém, ou a alguém conduzisse: um dono ou um cego invisível.

     Em seguida refletiu sobre a limpeza do cachorro orgulhoso e da sujeira do centro da cidade. Mais uma falta no cão: a sujeira. Outra ainda: o abandono. Assim era um cão sem cego e sem dono e sem afinidade com as ruas do centro. De certo, pois, era um ser de outros ecossistemas, outros lugares, talvez de outro planeta. Fugitivo, desertor, invasor, quem sabe. Muito senhor de si, esse cão, refletiu. E mais uma vez riu, supondo a metáfora de um mundo de cães senhores de metrópoles sujas com homens a ladrar e a serem coletados em carrocinhas.

     Quis aprofundar-se no mistério do cachorro indevido a desfilar limpo na calçada imprópria – e vejam, tantos pães e guloseimas nas vitrines e ele nem olhava! – mas uma voz ordenou adoçante...

     Sua atenção vacilou e num espaço de um flash o cachorro inexistiu, o que o irritou. Mas o trato que vinha de desde antes da língua chamuscada do café, e da verborragia dos amigos era de que ele talvez não existisse ali (ele que de fato nos últimos tempos realmente não tinha estado ali no círculo), e com uma cara de máscara abobalhada disse, sem abrir a boca, com indizível abuso, que não incomodasse sua ausência na mesa com um pedido de adoçante, ora – que respeitasse as leis, e que além do mais havia o cachorro e seu enigma.

     O adoçante jazia à sombra dos guardanapos, como observava o canto do olho desprendido da atenção ao cão.

     A seguir, quando toda a atenção reuniu seus pedaços e tentou recompor o olho e olhar, não houve mais cão: ido, sumido, talvez nem havido.

     Só o casal de idosos a comerem hambúrgueres de carne de bode – os animais moídos e formatados dentro de duas fatias de pão se exibiam deliciosos num enorme cartaz promocional – ofereceu-se à sua atenção abandonada pelo cachorro. No entanto a mosca ainda preta instou-o ao retorno e por ela chegou à mesa, sem interesse algum, como alguém que chega ao ponto de ônibus e o transporte também chega cronometrado, inglório, uma dádiva idiota, pela qual ele nem agradece.

sábado, 24 de março de 2012

A Meta (2)

(...) O trabalho no jornal não o cansava tanto quanto as caras que via e tinha que ver. Na frente de uma e outra algumas vezes dissera insensatamente mais do que deveria ter dito e fora devidamente punido. A meta talvez tivesse a ver com isso, com finalmente largar o jornal e abrir a gráfica. Mas os dias sempre amanheciam com demasiada luz, e à beira-mar, suspirava...

Seus amigos, poucos na verdade, o tinham em alta conta como bom cantor e ótimo anfitrião. Algumas noites por semana, a piscina ondulando em azul sob as luzes do jardim, se reuniam em prol de nada mais que de si mesmos. Adriano e Márcia sempre estavam lá, os demais eram rotativos. Adriano “... o imperador, construiu uma cidade e deu-a de presente para Antínoo como prova do seu amor” dizia no dicionário, sonhando,  para amargamente concluir: “desse Adriano eu ganhei um isqueiro mês passado...”. Márcia “tem os cabelos mais lindos desse planeta, os olhos mais suaves e tristes e uma imprecisão nos gestos que encanta e causa riso. Se eu fosse mulher, queria ser o contrário dela. Mas eu a amo”.

Conversavam sobre livros, filmes, pessoas e coisas. Volutas não faltavam. Quando achavam por bem que houvesse o vinho, as alegrias se hipertrofiavam e as palavras soltas se multiplicavam. “Existência”, “dor” e “amor” não faltavam - pois isso foi há quinze anos, quando ainda havia muita esperança. Adriano às vezes tocava o violão e Ele cantava... por falar nisso, assim se definia Ele no Dicionário: “Sou Ele: desse jeito, simples. Meu nome não diz nada de mim – talvez diga de meu pai, ou da minha mãe, que foi quem o escolheu, mas de mim, nada. Palavras, brutamente falando, são sopros articulados. Como esperar que alguma verdade haja em vento que sai da boca e do nariz? Conheci um rapaz louro que se chamava Eduardo – um nome cujo som arde em chamas de poder e paixão na minha alma, um rapaz lindo... Mas nada havia de Eduardo em Eduardo. Talvez José, ou Nero, ou Lúcifer. (...) Já entrevistei um anão, que sustentava três filhos rolando no chão da praça no meio do povo, e que se chamava Julius César de Jesus (...) Meu nome é como o de Deus - é só pra dizer que eu sou - : um mero vocativo...”


Nessas noites de alegria Ele cantava as coisas que ouviam. Sua voz era grave e de uma potência inesperada. Uma vez, provavelmente já perto do sol nascer, falara de um cantor indiano, o qual aprendera a traduzir em música pura o trinado de pássaros, o coaxar de sapos e o grunhido de macacos. Segundo Ele, tais músicas, além de revelarem um talento muito mais que artístico, místico, tinham apelo hipnótico e quando reproduzidas levavam o público ao êxtase – geralmente formado por pessoas da área da música de vanguarda, artistas, intelectuais. “E mais, Ramadranath não apenas traduz o som desses animais em música, mas em letras...”

No meio dos risos que causou, Ele também riu, insistindo porém que falava a verdade, e que tinha, como prova, algumas das canções do cantor e intérprete indiano guardadas num disco. “Os nomes das canções são tipo ‘Clamor de meus filhos’, ‘Onde está o meu nenúfar?’, ‘Banana sapiens’, ‘A rã que ri no rio dos homens’... Se o Adriano for comigo até à sala procurar o disco...”

Márcia nesse instante baixou os olhos mas Ele não viu.

Antes de levantar e entrar em casa acompanhado do amigo, o vermelho de uma cinza se apagando no cinzeiro sobre a mesa de palha por um instante lhe entristeceu pateticamente...

Havia na parede da sala um quadro onde uma jangada encalhava na areia e um pescador de rosto oculto na sombra do chapéu dobrava a rede. Numa mesa três vasos em silêncio de barro se abriam rubros. Sentados no tapete – em cujos fios dois chineses do campo alimentavam duas eternas aves - Ele espalhou discos e palavras nuas, finalmente claras para que o outro ouvisse...

Mas no silêncio de Adriano as canções nunca foram achadas, nem caminho ou rua alguma foi aberto, muito menos uma cidade...



terça-feira, 20 de março de 2012

A Meta

Parte 1


A meta

“Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor”
Fragmentos de um evangelho apócrifo, 50,
Jorge Luis Borges



Houve um dia em que abriu os olhos. Supôs um caminho, uma meta qualquer. A dúvida porém sempre vinha. Espantava-a como a uma mosca, mas como mosca o “e se...” agourento revolteava e não se ia.

Prestou atenção na fumaça sendo tragada pelo vento que circulava da janela. Não deixava de ter sua beleza. “Maldito seja quem inventou o cigarro”, pensou. “Bendito seja...”, tinha dito no dia anterior, quando, no prosseguimento de seu “Dicionário das Coisas”, tinha escrito assim:

“Cigarro: coisa freudianamente masculina, símbolo da fraqueza, do glamour, da vontade de esquecimento. Mais uma das materializações do desejo humano que, como tudo que humano é, traz consigo tanto a morte como a vida. (...) O cigarro foi feito para ser fruído, e por tabela, malignamente nos fruir... Cigarro é comungar com o mundo por via desse ritmo existencial, antiqüíssimo, semi-divino, o da respiração. Fumar é pulsar no mundo de uma certa maneira. Nociva que seja... E encerra mistérios tais... Até hoje não há teoria científica que explique a vontade e a incerteza hipnótica das volutas azuladas que saem dos pulmões a evoluir as moléculas do fumo, do fumante e outras mais no vento. Volutas são nuvens de dentro. Seu destino tão desconhecido como o de quem as suspira, nervoso ou calmo. Considerando que a única certeza de que dispõe um mero ser humano é a morte, fumar é compartilhar com o Todo a essência de Tudo: misto indelével e angustiante de certeza e incerteza. Cigarro é portanto a certeza de morrer – da perspectiva individual, pequena, pouca - , e, a um só tempo, a incerteza do porvir – do Derredor, do Grande, do Tudo. Marilyn Monroe...”

E assim por diante. O Dicionário era uma tentativa de esquecer e lembrar ao mesmo tempo. Um passatempo. Algo como para fixar-se no papel, antes que, como as volutas, fosse tragado pelo vento e sumisse de vez.

Quanto à meta, provavelmente na próxima hora a esqueceria. Supria-o o sol daquela manhã e a vaga lembrança das flores do jardim. Cultivava-o como terapia. Cães e gatos estavam além de sua capacidade de cuidado e apego. Já as plantas são vivas, bonitas, simples e verdes. Que elas sugassem sua vida do ar, da terra e do sol lhe parecia uma magia quase assustadora, e que por isso, merecia uma certa adoração. Regava as plantas invejando-as. Nunca tentou falar com elas, era muito cético. Mas o balançar de uma folha lhe dizia tanta coisa que um dia chorou sem saber porque, tímido. Lembrava-se também de uma vez que um besouro parecido com uma abelha se deitara no néctar de uma pequena flor rosa, e de como houvera êxtase no movimento de suas patas e antenas. Na terceira semana se surpreendeu com a tessitura que uma aranha fina e astuta lograva no meio do verde e da sombra. No fim do mesmo dia um inseto jazia em conserva, como uma múmia, na teia. No centro, longe, a aranha gozava do momento.

No Dicionário figurava assim o verbete jardim: “É a paragem onde transmorfias maravilhosas acontecem no silêncio mais absurdo que pode existir: o da vida que se faz. Orquestras deveriam soar, trombetas estrondosas deveriam gritar, ou pelo menos uma flauta e um oboé deveriam acompanhar cada desabrochar de flor e luzir de folha. Alquimistas, magos, cientistas olham pro tronco que se ergue, pro sol que se deita na folha, pras cores que vemos e que não vemos, com mágoa – a de não poder, a de ter que se contentar com o mistério, sem talvez nunca achar sua luz. Quando a chuva em gota escorre na poeira seca de uma folha verde vivo fica mais fácil acreditar em Deus”.

Quanto a abrir os olhos, fechava-os com freqüência. Tinha hipersensibilidade à luz e pensava mesmo que com o tempo deixaria de sair de casa antes que apenas a lua brilhasse no céu. Uma vida de vampiro até que lhe agradaria - desse ser, que segundo ele “une o melhor da morte e da vida. Deseja ardentemente, tanto é que só o corpo não basta, tem de ter o sangue. A crer nas novelas escritas ultimamente, são belos, inteligentes, galantemente cruéis. Voar, viver séculos, ter tempo e sangue para acumular a sabedoria do tempo de viver e de morrer: só a fantasia poderia criar uma coisa tão boa...”.

(...) 

quarta-feira, 14 de março de 2012

A dança


Harmonia: continuidade entre duas diferenças, ponte de um abismo ao outro. Harmonia como o jeito de ser do mar: do abismo escuro, subindo pelas montanhas submersas até à planície da terra seca continental, a água flui tão contínua que da pedra da crosta fez areia molhada.

Harmonia de dança equilibrada e que não pára. Coordenação exata e pura, de pássaros evoluindo em nuvem no azul do céu, ou dos cardumes de peixes em revolução de fuga no azul do mar.

Estar em conformidade – mas nos conformes não pensados, não ordenados, não exigidos, livres como se é livre sem pensar muito bem. Conformemente sentir de acordo com o momento de fora encadeado com o de dentro como se não existissem mais de tão unidos nem esse dentro nem esse fora.

Assim que eu queria estar. É assim que eu estou no meio de Tudo sem querer, mesmo que não saiba e não queira.

Então o que falta é saber.

É saber que sem saber, eu sou com.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Não


Foi tão ampla a mesa
Que meu corpo não se coube
Identifiquei países em manchas,
Amor em borbulhas, tempestades em copos.

Na cerveja caiu uma estrela
Pediu-se um desejo na borda.
Mas o mapa era infinito...
O caminho esbarrou no meio vazio
Do copo alheio...


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Um pote de barro

Eu não sei.

Porém este meu não-saber é pleno, cheio de coisas: de saber muito, por exemplo, de saber qualquer coisa, ainda mais. Não quero dizer “nada sei”, pois se quisesse dizer di-lo-ia da maneira mais simples e calma: nada sei. A pura contradição imediata no entanto é que se já se sabe que nada se sabe, sabe-se alguma coisa então sim, e já não é mais um nada isso. Logo, uso “não sei”, que é um arco incansável de flechas inúmeras apontadas pra todo lado.

O fim disto? No lo sé – pra que não soe sempre igual. No lo sé porque nem o começo alcanço e fico mesmo é no meio – no meio presente, no meio ambiente, no meio entender, me esticando, me retorcendo e contorcendo, em busca de elasticidade, flexibilidade, ductibilidade também: rigidez não dá, o galho teso é o primeiro que quebra com o peso. Quero poder dobrar-me o pensamento naturalmente sem dor e ter a resistência impossível da fibra sintética mais nova.

E o que pesa? Tudo o que é pesa, meu Deus, até o sol pesa na cabeça. O tempo, o espaço, a vida, a morte, o riso, o choro, o problema, o emblema, a dor, o prazer, o desejo, o querer, o ter, até o ser pesa, pesa, pesa... Nem Heracles, Atlas, Einstein, Maturana, loucos e congêneres chegam pra tanto esforço. O único jeito é deslizar, fluir, deixar – a água deixa, a água flui, a água tanto bate que até fura...

Parece que estou dizendo água? Pois então é porque és pedra, e eu tanto vou bater que... Ou não – vou é ficar aqui quieto, me contorcendo pra ver se tomo a posição tranqüila do ser dessa cadeira, que é em paz, desse vaso com plantas, vermelho úmido e perfumado do barro, dessa janela aberta, grande olho vazado da minha casa no perímetro final urbano à noite.

Pois é noite. Não poderia ser de outra forma já que no Japão uma menina diz sim a seu menino-amor de olhos puxados e enternecidos no portão da escola ao sol de verão. Na China outra menina é atirada pelo não da mãe no rio – porque quem cuidará dos pais velhos no dia de amanhã?

É noite aqui e eu queria também uns olhos puxados e enternecidos pra mim. No entanto só tenho sacrificado filhas-meninas de tanto pensar cínica e cegamente no meu futuro. Taí mais um algo que pesa: o futuro. Pesa tanto que de tanto fitá-lo sou capaz de matar a menina do olho e ficar cego, tateando no presente estado de coisas, perdido e sem rota.

Já olhei nos olhos do abismo – e sim, este me olhou de volta; já desci de escafandro até o fundo do mar pra ver de perto o raro caranguejo branco circulando o vulcão que aquece o escuro eterno, e lhe dá vida exótica. Olhei nos olhos do bicho, que era cego de tanto não ver e vi ali que: também muito não vejo, um ror de coisas me escapa – qual o próprio aracnídeo, que me escapava semanas atrás: e ainda assim ele existia, sem eu saber! - e entendi que mesmo o sol e o pensar são um pequeno vulcão triste, ilha de vida no meio do breu eterno...

Nessa minha janela tem uma estrela. Que a nuvem cobriu. Eu espero. E um morcego voa. E uma buzina. Talvez uma chacina... Longe. Eu espero.

Se morresse agora queria que me mumificassem – pra saberem como era um plebeu desse século último: perenemente à espera e cheio de problemas nas transmissões entre os neurônios. Os sábios de daqui a cinco mil anos, meus descobridores, saberiam do que se tratava? Entenderiam meu cigarro, meu remédio e minha expressão? Identificariam as carências de hormônios de alegria e de prazer ou o excesso dos outros, e leriam a vaidade da minha vida na fala muda dos meus objetos? Ou diriam apenas: “Não chegou a ser tudo o que era, mas este outro objeto – a cadeira – sim”?

Olhe que quando se trata de viajar, esse mundo apenas não me basta. Eu saio mesmo, vou-me. O único risco aqui é não voltar. Antes esse risco que o de vida que se corre lá fora de casa – de onde o próprio ir pode-se perder sem volta, por um relógio, por um não, por um talvez. O não-retorno é um medo e Clarice pensava às vezes que não voltava completamente. Seria como dormir e acordar ao mesmo tempo. Um perigo. Mas deixe, teço um fio de Ariadne, uma linha telefônica direta com o prático: alô, a conta?, ah, o dinheiro, é preciso, o preço do viver, o custo da vida, eu sei, eu sei e... puff!,  caí da nuvem, voltei.

O feijão aumentou muito de preço essa semana. Porque a soja colhida por máquinas dava mais dinheiro, e agora parece que é a cana de novo, pois o petróleo suja demais e queremos viver pelo menos mais um século, pra ver se dá tempo de sair do planeta ao menos. Recomeçar, reinventar, repetir... A árvore do conhecimento cresceria em solo marciano? Seu fruto será a vida eterna e o conhecimento? Sinceramente, eu duvido muito, vide Terra: aqui deu no que deu, e a gente se pudesse, voltaria atrás? Ai, meu Deus, pra que tanto arbítrio?

Na verdade o que eu queria era escrever um texto que se pudesse ler em qualquer contexto, ou seja, uma coisa que uma pessoa, um ET ou um anjo, ou seja lá o que fosse pudesse ler sem percalços e demasiadas dúvidas. Mas isso é impossível, eu sei, ao menos com palavras. Palavras são moedas e os dinheiros, as cobiças e os preços mudam rapidamente... [E números também são palavras, viu, essa história de que matemática é universal não procede – o número é a palavra de uma língua – e a língua é coisa nossa, humana...]

Ser entendido através dos tempos exigiria talvez a singeleza e subobjetividade de um objeto: teria que dar uma de artista plástico, é: manejar o bruto da matéria, o subjetivo do palpável e lançá-lo no espaço tangível para que as objetividades gerais o captassem como coisa mediata. Por exemplo, como traduziria o texto que é esta crônica com a palavra-bloco-texto da pura língua objetal?

Simples: um vaso. Aliás, um vaso não: um pote. Um pote de barro vazio, como o da minha avó, que era cheio de uma água doce, às vezes da chuva, e deixado num canto de penumbra. A água absorvia essa penumbra, e um frescor triste mas bom tomava conta de quem tomava da água fria. E o pote nunca secava, juro! Perguntava à avó quem o enchia (pois nunca vira ninguém enchê-lo) e ela dizia que ninguém, sorrindo enrugada.

Pois se tivesse que deixar um testamento-recado para a posteridade inominável, este seria um pote vazio – se bem que é sempre bom lembrar que um pote, e um copo, vazio está cheio de ar... Pois seria a minha cara, a minha máscara, a minha metáfora para os seres desse futuro por quem mato meninas no rio das preocupações.

Aí em seguida a nova pergunta existencial desses seres seria sobre o que ali faltava, o que no artefato anacrônico caberia: água, jóia, loucura, sangue, terra, excremento, excentricidade, ossos, carne...? Grandes concílios se fariam entre os sábios para decidirem que segredo guardava o objeto deixado como relíquia pelo habitante do mundo que morreu...

E aí talvez já próximos à desistência diante de tal árido mistério intelectual, um sábio mais dado a filosofices chegasse, e finalmente, com coragem, jogasse uma indagação perturbadora mais ou menos como essa: “E quem disse que deve faltar alguma coisa a esse objeto? Não vêem, como eu vejo, que o recado é justamente esse: que no vazio assinalado cabe tudo o que nele não há? E que sua infinitude está justamente no todo das suas possibilidades... e que essas possibilidades são mais nossas que as de quem fabricou...?”

E ainda assim o pote não teria dito uma palavra, cheio de penumbra e silêncio...

domingo, 9 de outubro de 2011

Lumière

 Este é o sol,
Este é o mar,
Este é o eu,
E o eu é isto.

O cima, o baixo,
O dentro e o fora,
Tudo resumido num árduo esquema
De querer saber;
Mas entender
É outra história
Que não é esta,
Nem isto,
Nem eu.

Porque o momento é aqui.
Em que tudo é tão límpido e claro
Que transluz...
(Abriu-se o véu)
Mas do outro lado
Não há nada que não seja
O este,
O isto
O eu
E o aqui.
Assim.
E apenas assim.
Ofensiva e alegremente assim.