sábado, 24 de dezembro de 2011

Feliz Papai Noel!

Resumo da palestra realizada em ??/??/?? no Auditório Geral, pelo Pesquisador nº 758-A-25, arqueólogo responsável pelo setor 75 (conhecido pelos nativos como "Via Láctea").

A descoberta é mais uma de uma lista de15 civilizações no setor em questão. O aprimoramento tecnológico é de nível 3, como indicado anteriormente. O ponto forte dos antropoides nº12, tipo 2 (quatro apêndices, dois posteriores, dois anteriores, com ramificações - "polegares" - opostas às demais), no que diz respeito à sua organização sócio-psico-bio-histórico-antropo-social, é a extrema variedade na construção das relações interativas e da expressão das mesmas. Como exemplo vejamos a reprodução - reconstituída a partir de fragmentos de textos extraídos de memória física e/ou eletrônica - de algo que parece ter sido um dos principais fatos históricos (mitos? Lendas?) da civilização em questão:

(Há duas vias de compreensão do tema - uma gira em torno de narrativa histórica ou pseudo-histórica (o que é irrelevante, já que é demonstrado que a "crença" em seres de base biológica como a dos humanos tem fisiologicamente o mesmo estatuto da "realidade" em muitas ocasiões); a outra é relacionada a análises psico-cosmológicas)

Um ser humano do sexo feminino foi avisado por um ser celestial, que daria à luz uma criança especial, sem ter realizado cópula com um ser humano do sexo masculino e sem ajuda de métodos de fecundação artificiais (lembremos que os seres humanos se reproduziam sexuadamente, o que constituiu no caso um evento extraordinário para a espécie). O cruzamento com textos cosmológicos e textos similares de outras culturas humanas aludem a uma conjunção estelar precisa que combina o nascimento do menino (que se chamaria ou se chamou Jesus) a posições referidas como mágicas ou divinas das estrelas Sírio, do sol e de outros planetas do sistema solar da civilização em questão.

Reza o relato que o menino nasceu ainda em condições emblemáticas, que incluem a presença de outros animais não-humanos e a visita de figuras que ainda nossos experts não identificaram com certeza (androides, seres de outras dimensões, reis?). 

O menino em questão, ou Jesus, seguiria uma caminho biográfico obscuro até os doze anos de idade (o que corresponde a um período de desenvolvimento chamado "infância", mas que a análise de outros textos indica ter sido rico em milagres e descobertas estarrecedoras por parte de seus pais (consultar texto intitulado Evangelho da Infância). 

A ideia de que a paternidade do menino seja a de uma figura masculina onisciente, onipotente e onipresente parece ser de muita importância para os seres humanos das culturas em que tal relato é conhecido. Ainda estamos averiguando a veracidade desse dado, mas não temos motivos fortes para afirmá-la ou negá-la.

Como será tema de outra palestra, os principais acontecimentos da biografia de Jesus serão apresentados a fim de entendermos termos interessantes como "Inquisição" e "Apocalipse"... mas continuando:

Mais tarde, com o desenvolvimento das relações de troca simbólicas e das relações de trabalho, surgiram entidades organizacionais conhecidas como "empresas", que basicamente propunham objetos ou serviços que podiam incluir alimentos tóxicos, como a "Coca-cola" (H2O em estado líquido misturado a açúcares e CO2,  corantes, entre outras substâncias incompreensivelmente maléficas aos sistemas e subsistemas biológicos humanos). As relações de tais empresas com os seres humanos se estabeleciam por meio de símbolos apelativos, tais como o "Papai Noel", um ser humano idoso, de barba (pelos localizados em certas áreas das faces humanas, sobretudo ao redor do órgão de entrada de alimentos) - que por sua vez derivava da imagem construída ao redor da divindade masculina não-reprodutiva onisciente, onipotente e onipresente dos humanos.

Por meio de uma evolução complexa realizada e cultivada pelas "empresas" sobretudo entre as crianças, a figura de Jesus foi aos poucos combinada e recombinada com a do "Papai Noel", o que resultou também na e da combinação de outros símbolos de outras religiões (árvores, alimentos, trocas de objetos sem a presença de símbolos intermediários ["dinheiro"], etc). De modo que nos é atualmente difícil entender realmente a dinâmica psicológica da época do ano chamada "Natal" pelos seres humanos: alguns de nossos especialistas falam de uma mera orgia de troca de objetos e serviços com finalidade hedonista de curto-prazo; outros falam de uma ocasião ímpar em que a figura do menino sobre-humano Jesus é rememorada e vista como sugestão de comportamentos altruístas e reflexivos que resultariam em aumentos generalizados nos níveis de serotonina na maior quantidade possível de seres humanos (sobre isso ver "amor" e "fome na África"). 

Sabe-se que crianças nas culturas humanas, durante o Natal esperavam à noite que objetos surgissem, trazidos por "Papai Noel" (possivelmente um ex-funcionário da "empresa" Coca-cola) ou por Jesus, que se deslocaria sobre um trenó puxado por jumentos (como no relato bíblico), trazendo assim felicidade para todas as crianças (embora a relação entre felicidade e quantidade de objetos seja efetiva em 1% dos casos, mesmo entre seres humanos).

Nesse ponto, chamamos à atenção a natureza altamente variada dos grupos humanos - acreditamos que a orgia de troca de objetos e a alta do registro de comportamentos altruístas durante o Natal ocorriam de forma combinada, embora quase que essencialmente contraditória. O caráter de luminosidade, de paz e de amor da figura do menino Jesus é óbvia. A realização efetiva das ações que essa figura inspirava é claramente incongruente com nossas observações históricas dos seres humanos.

Esperamos que tenha ficado clara a importância do assunto em relação aos seres observados e como esta festa nos diz sobre sua natureza altamente contraditória.

Como diziam os seres humanos na época do Natal (segundo as últimas traduções feitas): FELIZ PAPAI NOEL!



(Espero que tenha ficado óbvio que se trata de um texto de ficção em que a minha pessoa imaginou como uma civilização alienígena veria o natal num futuro distante hipotético. Apesar de ter o direito de não sê-lo, sou otimista quanto ao Natal - acho sim que ele pode ser e é pra muita gente a oportunidade de se tornarem pessoas melhores e mais próximas dos ideias cristãos. Mas como não sou cego nem louco, é inevitável que a hipocrisia geral me incomode e me inspire talvez um pouco demais... De modo que corrigindo os nossos amigos alienígenas do futuro e muitas outras pessoas do presente: FELIZ NATAL DE MUITA PAZ E AMOR PRA TODOS E TODAS, DO FUNDO DO CORAÇÃO!!!

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Um pote de barro

Eu não sei.

Porém este meu não-saber é pleno, cheio de coisas: de saber muito, por exemplo, de saber qualquer coisa, ainda mais. Não quero dizer “nada sei”, pois se quisesse dizer di-lo-ia da maneira mais simples e calma: nada sei. A pura contradição imediata no entanto é que se já se sabe que nada se sabe, sabe-se alguma coisa então sim, e já não é mais um nada isso. Logo, uso “não sei”, que é um arco incansável de flechas inúmeras apontadas pra todo lado.

O fim disto? No lo sé – pra que não soe sempre igual. No lo sé porque nem o começo alcanço e fico mesmo é no meio – no meio presente, no meio ambiente, no meio entender, me esticando, me retorcendo e contorcendo, em busca de elasticidade, flexibilidade, ductibilidade também: rigidez não dá, o galho teso é o primeiro que quebra com o peso. Quero poder dobrar-me o pensamento naturalmente sem dor e ter a resistência impossível da fibra sintética mais nova.

E o que pesa? Tudo o que é pesa, meu Deus, até o sol pesa na cabeça. O tempo, o espaço, a vida, a morte, o riso, o choro, o problema, o emblema, a dor, o prazer, o desejo, o querer, o ter, até o ser pesa, pesa, pesa... Nem Heracles, Atlas, Einstein, Maturana, loucos e congêneres chegam pra tanto esforço. O único jeito é deslizar, fluir, deixar – a água deixa, a água flui, a água tanto bate que até fura...

Parece que estou dizendo água? Pois então é porque és pedra, e eu tanto vou bater que... Ou não – vou é ficar aqui quieto, me contorcendo pra ver se tomo a posição tranqüila do ser dessa cadeira, que é em paz, desse vaso com plantas, vermelho úmido e perfumado do barro, dessa janela aberta, grande olho vazado da minha casa no perímetro final urbano à noite.

Pois é noite. Não poderia ser de outra forma já que no Japão uma menina diz sim a seu menino-amor de olhos puxados e enternecidos no portão da escola ao sol de verão. Na China outra menina é atirada pelo não da mãe no rio – porque quem cuidará dos pais velhos no dia de amanhã?

É noite aqui e eu queria também uns olhos puxados e enternecidos pra mim. No entanto só tenho sacrificado filhas-meninas de tanto pensar cínica e cegamente no meu futuro. Taí mais um algo que pesa: o futuro. Pesa tanto que de tanto fitá-lo sou capaz de matar a menina do olho e ficar cego, tateando no presente estado de coisas, perdido e sem rota.

Já olhei nos olhos do abismo – e sim, este me olhou de volta; já desci de escafandro até o fundo do mar pra ver de perto o raro caranguejo branco circulando o vulcão que aquece o escuro eterno, e lhe dá vida exótica. Olhei nos olhos do bicho, que era cego de tanto não ver e vi ali que: também muito não vejo, um ror de coisas me escapa – qual o próprio aracnídeo, que me escapava semanas atrás: e ainda assim ele existia, sem eu saber! - e entendi que mesmo o sol e o pensar são um pequeno vulcão triste, ilha de vida no meio do breu eterno...

Nessa minha janela tem uma estrela. Que a nuvem cobriu. Eu espero. E um morcego voa. E uma buzina. Talvez uma chacina... Longe. Eu espero.

Se morresse agora queria que me mumificassem – pra saberem como era um plebeu desse século último: perenemente à espera e cheio de problemas nas transmissões entre os neurônios. Os sábios de daqui a cinco mil anos, meus descobridores, saberiam do que se tratava? Entenderiam meu cigarro, meu remédio e minha expressão? Identificariam as carências de hormônios de alegria e de prazer ou o excesso dos outros, e leriam a vaidade da minha vida na fala muda dos meus objetos? Ou diriam apenas: “Não chegou a ser tudo o que era, mas este outro objeto – a cadeira – sim”?

Olhe que quando se trata de viajar, esse mundo apenas não me basta. Eu saio mesmo, vou-me. O único risco aqui é não voltar. Antes esse risco que o de vida que se corre lá fora de casa – de onde o próprio ir pode-se perder sem volta, por um relógio, por um não, por um talvez. O não-retorno é um medo e Clarice pensava às vezes que não voltava completamente. Seria como dormir e acordar ao mesmo tempo. Um perigo. Mas deixe, teço um fio de Ariadne, uma linha telefônica direta com o prático: alô, a conta?, ah, o dinheiro, é preciso, o preço do viver, o custo da vida, eu sei, eu sei e... puff!,  caí da nuvem, voltei.

O feijão aumentou muito de preço essa semana. Porque a soja colhida por máquinas dava mais dinheiro, e agora parece que é a cana de novo, pois o petróleo suja demais e queremos viver pelo menos mais um século, pra ver se dá tempo de sair do planeta ao menos. Recomeçar, reinventar, repetir... A árvore do conhecimento cresceria em solo marciano? Seu fruto será a vida eterna e o conhecimento? Sinceramente, eu duvido muito, vide Terra: aqui deu no que deu, e a gente se pudesse, voltaria atrás? Ai, meu Deus, pra que tanto arbítrio?

Na verdade o que eu queria era escrever um texto que se pudesse ler em qualquer contexto, ou seja, uma coisa que uma pessoa, um ET ou um anjo, ou seja lá o que fosse pudesse ler sem percalços e demasiadas dúvidas. Mas isso é impossível, eu sei, ao menos com palavras. Palavras são moedas e os dinheiros, as cobiças e os preços mudam rapidamente... [E números também são palavras, viu, essa história de que matemática é universal não procede – o número é a palavra de uma língua – e a língua é coisa nossa, humana...]

Ser entendido através dos tempos exigiria talvez a singeleza e subobjetividade de um objeto: teria que dar uma de artista plástico, é: manejar o bruto da matéria, o subjetivo do palpável e lançá-lo no espaço tangível para que as objetividades gerais o captassem como coisa mediata. Por exemplo, como traduziria o texto que é esta crônica com a palavra-bloco-texto da pura língua objetal?

Simples: um vaso. Aliás, um vaso não: um pote. Um pote de barro vazio, como o da minha avó, que era cheio de uma água doce, às vezes da chuva, e deixado num canto de penumbra. A água absorvia essa penumbra, e um frescor triste mas bom tomava conta de quem tomava da água fria. E o pote nunca secava, juro! Perguntava à avó quem o enchia (pois nunca vira ninguém enchê-lo) e ela dizia que ninguém, sorrindo enrugada.

Pois se tivesse que deixar um testamento-recado para a posteridade inominável, este seria um pote vazio – se bem que é sempre bom lembrar que um pote, e um copo, vazio está cheio de ar... Pois seria a minha cara, a minha máscara, a minha metáfora para os seres desse futuro por quem mato meninas no rio das preocupações.

Aí em seguida a nova pergunta existencial desses seres seria sobre o que ali faltava, o que no artefato anacrônico caberia: água, jóia, loucura, sangue, terra, excremento, excentricidade, ossos, carne...? Grandes concílios se fariam entre os sábios para decidirem que segredo guardava o objeto deixado como relíquia pelo habitante do mundo que morreu...

E aí talvez já próximos à desistência diante de tal árido mistério intelectual, um sábio mais dado a filosofices chegasse, e finalmente, com coragem, jogasse uma indagação perturbadora mais ou menos como essa: “E quem disse que deve faltar alguma coisa a esse objeto? Não vêem, como eu vejo, que o recado é justamente esse: que no vazio assinalado cabe tudo o que nele não há? E que sua infinitude está justamente no todo das suas possibilidades... e que essas possibilidades são mais nossas que as de quem fabricou...?”

E ainda assim o pote não teria dito uma palavra, cheio de penumbra e silêncio...