sábado, 26 de maio de 2012

É bom porque eu gosto ou eu gosto porque é bom?

"Ai, que fundamental é o jazz, não?"

As razões que se apresentam pra justificar a idéia de que gosto não se discute em geral têm a ver mais com diplomacia ou com preguiça intelectual e estética (seja lá o que for esta última) do que com uma reflexão sincera e objetiva sobre o assunto. Trocar figurinhas lógicas sobre o que faz bem esteticamente a um e outro, a mim me parece algo no mesmo nível de fazer comentários sobre o filme que se acabou de ver.

Ouvi ou li uma definição de belo que considero eficaz e agradável pela sua simplicidade: normalmente dizemos que algo é bom, belo, bonito quando experimentamos uma sensação de bem-estar diante do objeto em questão. Acho genial ligar bem-estar psíquico e físico à apreciação que chamamos estética ou artística: puxa de volta pro domínio do corpo e das sensações aquilo que um punhado de chatos tenta elevar ou seqüestrar para inalcançáveis domínios técnicos, metafísicos e abstratos.

Não ousaria vomitar aqui teorias sobre arte ou estética, mas arrisco dizer duas ou três coisinhas sobre o que acho que sinto quando digo que alguma coisa me agrada ou me repugna:

Desde sempre teóricos da arte julgavam que o seu tempo, a sua época era de decadência. Pegando a Poética de Horácio, passando pela Idade Média e pelo Renascimento, sempre se ouvirá da boca dos artistas a palavra decadência, equívoco, apocalipse, fim dos tempos... Hoje não é diferente, e o fato de que nunca na história do planeta tantos seres humanos produziram tanta música e imagens e outros objetos artísticos, talvez exagere essa impressão de que vivemos tempos áridos, de fim de mundo, para a arte...

Valeska Popozuda, Restart, Bjork, Lady Gaga, Beatles, Michel Teló, Gretchen, Roberto Carlos, Lenine, Ana Carolina, Bonde do Tigrão, The Verve, Sigur Rós, Ceguinhas de Campina Grande, Mia, Juanes, Massive Attack, Louise Attaque, João Gilberto, etc, etc... Pessoas que cospem sons, batem superfícies, acionam alavancas e manuseiam mecanismos eletrônicos pra produzir música. Em alguns ouvidos esses sons produzem sensações boas, em outros, início de ataques epilépticos. Sendo seres pensantes, somos capazes de criar teoria sobre toda e qualquer coisa, e quanto mais conhecimento se tem, maior será a capacidade de combinar num discurso coerente idéias sobre qual ritmo, letra ou melodia é esteticamente elevada ou válida ou não. No entanto, não há teoria ou cartilha artística que vá fazer um coração sincero bater mais devagar quando ouve um funk ou Beethoven. Alguém já foi convencido a sentir prazer? É possível implantar no corpo de alguém o gosto por alguma coisa, no sentido de esse gosto vir de fora? Sem subestimar os poderes dos mecanismos condicionantes behavioristas, num dado momento pontual e específico, ou se gosta de algo, ou não. Claro que se pode passar a gostar de algo que antes se detestava – mas está implícita a idéia de que não foi a música ou o quadro que mudou, e sim a “mente”, o “coração”, a sensibilidade.

De forma que – como explicar que aquela musiquinha chatinha de algo insuportável tenha se tornado uma coisa boa, bonita, bela? Simples: se o grupo de amigos considerar os novos gostos mais aceitáveis do que os de antes, é claro que a resposta para essa pergunta será: meu gosto evoluiu, refinou-se. Claro, claro. Adequou-se, digamos. Então a música era boa antes e depois de um percurso de melhoramento apreciativo vc descobriu, deu-se conta, abriu os olhos para a beleza inerente, para a grandeza estética dos sons?
Aham.

Se uso a palavra “belo” para aquilo que me faz bem aos olhos, ouvidos, nariz e pele, e sou inteligente o bastante para produzir uma teoria que justifique o porque da”beleza” desse objeto, não é um abuso lógico afirmar que tal beleza se encontrava no objeto antes de eu vê-la nele? “A beleza está nos olhos de quem vê” nunca foi uma frase tão lúcida e legal. Se uma peça de mictório num dado momento passou a ser considerada obra de arte, afirmar que a “beleza” intrínseca foi descoberta não seria um pedantismo narcisista bobo, uma tentativa cínica de os seres humanos se enganarem ao atribuir valor de verdade a uma apreciação circunstancial e vulgar? Todas as nossas teorias da arte meio que tentam, no fim das contas, desesperadamente distanciar a cena de japoneses fotografando a Monalisa no Louvre da cena de um chimpanzé em êxtase diante de uma Barbie decapitada com vestido vermelho: bem-estar psíquico – e portanto físico – do mesmo jeito.

Aí ainda vem nego no meio da noite e das mesas montar para si um pequeno palanque com garrafas e koffs koffs intelectuais e cheios de desprezo, e afirmar que: “Blá blá blá. Blá blá blá, Etc e tal co co co, co co co – e por isso sou superior e mais lúcido, pois aprecio o que é bom – palmas discretas para mim”. Ou melhor ainda: cria-se uma roda de escárnio diante de objeto X, amado por pessoa Y, e dois ou trÊs especialistas em estética se dão ao prazer patético de blá blá blá co có co, reduzindo o objeto X amado por Y a um punhado de cocô.

Não, eu não defendo o caos e o relativismo – nem os fundamentalísticos “tudo é bom” ou “tudo é uó”. Não acho que Valeska Popozuda e Michelângelo se equivalham em suas performances artísticas. No entanto, os seres humanos que os apreciam/detestam em tese sempre se equivalem enquanto tais. Se não sou nem obrigado a andar de mãos dadas com os adoradores de Restart ou dos Beatles, nem por isso vou fazer rituais tupinambás de canibalismo emocional no melhor estilo “tenho 12 anos e minha mochila é melhor do que a suaaaaa”.

Que para alguns ou algumas Os Pholhas sejam superiores/inferiores a Gretchen (que uns causem crise de risos e outra de alegria) é completamente aceitável; MAS que alguns e algumas se achem essencialmente superiores aos outros porque sabem o que é belo e bom e bonito, é algo que se responde com um pulquérrimo e sonoro “Vá pra p*t* que pariu”.

Alguém discorda de que essa frase dita naquele tom de satisfação e catarse profundas seja uma coisa BELA?



Eu sei. You’re upper.



domingo, 6 de maio de 2012

Queremos o seu dinheiro, não você

Ah o dinheiro... No bolso é vendaval e nos bancos, rendendo infinitamente para enriquecer pessoas já ricas a partir de uma nuvem de teorias e humores do mercado, é o oxigênio do nosso mundo financeiro... Vc já parou pra pensar como é estranho uma civilização inteira construir praticamente todos os âmbitos de sua existência baseada na busca pelo dinheiro? Vc já pensou como isso é esquisito? Vc consegue imaginar  uma formiga enfiando a haste de uma folha de árvore no abdome de outra pra roubar um pedregulho microscópico que a outra estivesse carregando? Um alienígena chegando no nosso planeta talvez demorasse pra entender pseudo-tragédias como as crises de 2008 e 2011 - crises de espuma, produzidas, previstas e fomentadas por crianças especuladoras brincando na banheira... Ou talvez nos entendessem logo: civilização burra.

Humberto Maturana tem ideias interessantes sobre o assunto (aliás, quase todas as ideias de Maturana sobre qualquer coisa são interessantes, leiam): ele diz, por exemplo, que um sistema social só pode ser considerado como tal se a finalidade de seu funcionamento for a manutenção da vida de seus próprios elementos, o que, no caso do sistema social humano, seriam as pessoas. A partir disso, ele afirma que um formigueiro é um sistema social, assim como uma colmeia ou uma tribo de bonobos; mas as sociedades ocidentais ou ocidentalizadas atuais não, pois sua finalidade não é a manutenção da vida de seus membros, mas sim a continuidade de um sistema financeiro que garanta ganhos para um grupo seleto de seres humanos.

Pois muito bem, "eu quero seu dinheiro e não vc" poderia ser contestado em favor de algo mais cínico e lógico como "eu quero seu dinheiro e, portanto, vc". Mas o pior que no assunto de que quero falar não se trata nem disso.

Resumidamente: franceses, americanos, suecos, chineses, suíços, espanhois, belgas querem morango, carne, tabaco, iPhones, ouro, diamantes a preço de banana; passaram séculos viajando o mundo todo, desmantelando uma cultura aqui, promovendo uma matança ou guerrinha suja ali, sugando um país acolá... Inventaram meios de transporte cada vez mais rápidos pra facilitar o trânsito de pessoas (ou talvez principalmente de coisas...); começaram a deixar entrar em seus reinos pessoas ávidas para fazer aquele trabalho subalterno que seus súditos não suportam (ou suportavam) fazer... e agora, depois de terem convidado todos pra festa, querem acabar com a diversão?

A bandeira aparente das extremas direitas no mundo parece ser exatamente essa "queremos que todos sejam felizes, sobretudo se forem nos vendendo seus produtos e serviços quase de graça; mas cada um no seu quadrado"... Mais ou menos uma globalização medieval, uma abertura fechada: coisas e dinheiro entram, gente, não.

Breivik, Le Pen (pai e filha), Bush são sacerdotes dessa nova religião da xenofobia. São capazes de esbravejar e guerrear por petróleo mais barato, telefones, roupas e comida quase de graça, mesmo que produzidos por crianças ou trabalhadores à beira da estafa e do suicídio, mas não aceitam a livre circulação de pessoas, mais precisamente daquelas pessoas que descendem daquelas outras pessoas que tiveram seus países invadidos no passado para dar lugar àquilo que se chamava de colonização e/ou processo civilizatório.

Pois muito bem: ei-los aí: marroquinos, líbios, sul-americanos, argelinos, mexicanos - todos loucos pra serem as pessoas bem-nutridas e felizes da Declaração dos Direitos Humanos, cada um do seu jeito, cada um segundo a sua cultura, cruzando com perigo de morte as mesmas fronteiras e mares que há séculos eram cruzados no caminho inverso pra promover a pilhagem europeia aprovada por deuses, reis e sacerdotes. Como se diz hoje (e agora vou ser bem cínico), chupem essa.

Pelo que entendi do que alguns experts no assunto dizem, a alternativa à globalização é a adoção de um sistema hi-tech de feudos à la Idade Média - cidades conectadas umas às outras de forma clean e segura, com pessoas sorridentes com seus smartphones e calorias por dia asseguradas. No entanto sabemos que essas utopias esbarram em realidades bem adversas, e mais do que nessas realidades adversas, no desinteresse governamental geral em resolver seriamente problemas como a fome, as doenças e a ignorância - já que essas continuam a ser úteis, de alguma forma, a algumas pessoas e grupos.

O mais provável é uma Nova Idade Média mesmo, onde todos os países se isolam, fingindo viver num mundo mais saudável e evoluído do que o de um século atrás, enquanto que a cena atemporal de uma criança pedindo comida em algum país pobre do mundo continua a ser usada quando convém. Uma Nova Idade Média com direito a suas novas versões de cruzadas religiosas: as fundamentalistas, que no seu momento oportuno, começariam com queimas do alcorão por um pastor louco americano ou da bíblia por seus equivalentes muçulmanos... e já teríamos aí a justificativa pra uma guerra: que por sua vez resultaria em mais avanço tecnológico e petróleo, ou água... Que por sua vez resultaria em um crescimento econômico de uma década, seguido por uma crise financeira de outra década... e assim sucessivamente... até que alguém se toque e comece uma revolução de verdade, sem muito drama e falsas palavras romantizadas como "paz" e "liberdade" e pior ainda, "deus".