segunda-feira, 15 de março de 2010

Nem só de pão

Multiplicai-vos

1

A primeira vez que viu um rato de verdade foi quando se fazia a faxina mensal na casa de um amigo e foi encontrado um ninho quente num canto perdido do guarda-roupas.

Eram três filhotes rosas, pequenos, nus e frágeis. Eram cegos, e pareceram mais cegos e nus quando expostos à luz forte do sol do jardim e dos olhos dos meninos curiosos. Ele mais do que todos, ficou hipnotizado, e de pronto apaixonado pelos ratinhos. De cócoras, aproximando-se o mais que permitia o nojo que lhe fora cultivado, como que analisava sem entender cada gesto sem jeito dos filhotes, que ora se moviam muito inquietos, ora paravam, à espera.

Era quase um amor aquilo. De amor, pensava já como reagiria sua mãe se propusesse criar e cuidar daqueles filhotes, como se cuida de cães ou gatos... quando, do nada, teve uma idéia que lhe pareceu tão melhor e mais rica que não hesitou um instante diante das possibilidades, o que era contrário à sua natureza. Há muitos minutos contemplavam os ratos e o interesse dos amigos já se tinha ido, o que fez com que todos concordassem quando ele se apresentou para levá-los para longe e se livrar deles.

Arranjou uma caixa de sapato e com atenção e carinho conduziu as crias de mãe desconhecida até o outro lado da rua. 

Havia uma dona Marta numa casa, e muitos gatos na casa de dona Marta. O muro era baixo, e um dos gatos, um preto e velho, que vivia deitado no jardim, tinha apreço especial pelos carinhos do menino, e ao chamado deste, veio vindo, lerdo e interessado, rebolando maciamente e miando. Ao sair para a calçada, encontrou a caixa de sapato que o menino punha no chão.

O menino esperou, querendo muito o resultado do encontro. 

Na verdade pensara que veria mais gula, mais fome, mais vontade, igual ao que via nos desenhos na televisão. O deguste meio refinado do gato porém o impacientou. 

Não agüentando se curvou e cutucou um e outros, oferecendo-os entre si, pra agilizar o processo.

E foi então que sem nenhum sorriso, mas com uma satisfação que se via no estático da sua figura diante do espetáculo, assistiu e anuiu, contente, cada rato sumir, dócil e impotente, na boca apertada e sem pressa do felino...



2

Mais tarde dedicou-se aos estudos dos animais. O que foi de fato a conclusão clara desde criança para o que depois, e mesmo antes dos ratos, vivera: cuidar de cães abandonados, juntar formigas em recipientes de vidro para vê-las trabalhar; cultivar pequenas hortas e ver brotarem as sementes e crescerem as plantas; buscar ovos de calangos nos cantos dos muros e das pedras – quebrá-los e assistir a morte lenta dos lagartos prematuros; aprisionar borboletas num saco aos montes e depois soltá-las numa explosão de amarelo e asas; subir e descer com os peixes no aquário.

Já adulto, oficializara o seu interesse, e operacionalizara sua vontade de conhecer os meandros do funcionamento dos animais com estudos sérios e documentados.

Caíra de cabeça na química de seus corpos, na sua estrutura, no seu desenvolvimento e nas suas particularidades. Dissecava sapos e ratos com o maior prazer do mundo, agora orgulhoso e mais poderoso por ser capaz, antes mesmo de qualquer outro de seus colegas estudantes – pois em segredo já havia praticado aquilo várias vezes antes – de identificar cada sistema vital, cada processo vermelho e vivo que examinava e matava com suas pinças e lâminas ávidas.

Tinha certo apreço pelos ratos, por serem eles ao mesmo tempo tão insignificantes e significativos. Eram tão mamíferos quanto ele, quanto um gato ou um cachorro, mas  por azar não tinham a proteção do amor humano. Isso lhe dava muitos poderes. E sua vontade de ver e de saber exigia muito desses animais.

Além das experiências didáticas e aprovadas pela academia, fazia ele mesmo as suas próprias, que na maioria das vezes eram mais extrapolações e variações inusitadas daquelas que eram realizadas junto com os outros colegas.

Uma de que particularmente gostava a ponto de tê-la repetido algumas vezes, era a que analisava o imoral comportamento dos ratos de se devorarem aos companheiros e filhotes quando da ausência de comida.

Uma vez, às escondidas e com muita precisão, em casa mesmo, realizou o experimento ao seu jeito. Reuniu dois casais de ratos num devido lugar e deixou que se multiplicassem ao longo de duas gerações à base de uma calculada superalimentação. Meio deus, de cima, murmurou um alegre crescei e multiplicai-vos. Os ratos cresceram fortes e vigorosos. Gulosos, comiam de tudo com avidez crescente. Quanto mais lhes cedia dos restos de comida da casa, das rações de cão e gato, mais eles sentiam fome e comiam, ao ponto de terem sido observadas duas ou três mortes por problemas relativos à obesidade.

Seguiu com o regime dos ratos gordos até o nascimento da quarta geração, quando já se contava um número elevado de indivíduos. 

E de repente, como planejado, suprimiu drasticamente a alimentação dos roedores. De tudo no dia anterior, no dia seguinte não tinham mais nada os ratos.

E esperou. 

Não demorou muito para que aquilo que sabia que aconteceria começasse a se passar.



[Pessoas morrendo de comer picanha e outras de não comer nem um pouco menos que do básico, certos sacerdotes achando que ainda tem pouca gente nesse planeta e etc me fizeram pensar. Esses contos são o que pensei.]

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