terça-feira, 16 de março de 2010

Nem só de pão

Nas mãos de Deus

Tinha os olhos mais lindos da escola e o nariz mais afilado e aristocrático também, e ainda por cima era magra. Tinha peitos certos, que com certeza eram o que sustentava a inclinação superior de seu nariz diante de todas as meninas e dos meninos que lhe cercavam o caminho. Todas as suas roupas pareciam terem sido feitas sob encomenda, e de certa maneira eram, já que nas lojas que freqüentava com as amigas as calças e shorts fossem desenhados para cinturas esguias e magrezas semi-mórbidas.

Por sua vez Camila tinha exatamente o nariz da avó, e sua ascendência autóctone estava clara dos pés à cabeça. Seus cabelos lisos e nigérrimos eram a única coisa que suas amigas não paravam de louvar. O silêncio eloqüente quanto ao resto Camila suportava como uma cruz.

Mas as feridas doíam já aos doze, quando ainda trazia certos quilos a mais da infância sem esforço e suor. Aos quatorze, com o corpo indeciso apesar da urgência das coisas e da vida que se via na televisão, a dor foi insuportável, sobretudo no dia em que até a menina de olhos lindos e nariz adunco se achou gorda na frente de todas as outras e do espelho do banheiro. Disse que tinha que perder dois quilos. Os olhos gerais de início se arregalaram, mas ao som do nome da modelo de todas, assentiram e também acusaram-se excessos e se planejaram sacrifícios.

Camila, já doída e fraca, também pediu por vinagre e calou e fechou a boca.

Uma semana depois, com muito esforço e vontade, deixara pra trás pelo caminho os dois quilos da outra e mais trezentos gramas de peso diante do espelho e das amigas. Todas se felicitaram, contentes. Menos a dos olhos lindos, que só alcançara um quilo a menos e de repente se sentira derrotada diante de Camila. De sua boca Camila ouviu dizer, pois, que mesmo sendo a que mais emagrecera, ainda era a maior de todas, com dois números a mais. Em silêncio, como era seu jeito normal, Camila aceitou o desafio, e para a semana seguinte prometeu-se uma calça frouxa, caindo.

Tinha dores de cabeça de fome. Os cheiros da cantina e da cozinha a entonteciam. Às perguntas da mãe respondia que já comera na casa de uma amiga. E na mesa comia o menos possível. No terceiro dia quase desmaiou no quarto, para à noite ter que convencer a mãe de que não estava doente. Teria que comer, aliás, teria que parecer que comia. O impasse não era insolúvel, seguiria as dicas das meninas. E para alívio da mãe, comeu no jantar como há semanas não comia. Devorou purê, arroz, carnes, doces, bolos...

“Me senti tão gorda depois...”, disse ao espelho das amigas no banheiro. “Mas depois você...”, disse o reflexo preocupado da outra. “Claro... Foi mais fácil do que eu pensava”, e riu. Estava três quilos mais magra e dois números menos larga. Diante da de olhos lindos, seu triunfo foi imenso.

Mas Ana, que estava ao seu lado, evocou um nome estrangeiro de faces encovadas e ossudas, e o gosto do triunfo se azedou, e aquele gosto de tudo do estômago pra boca voltou e, se mirando no espelho, o que viu foi tudo, menos ossudo e encovado. Era gordo. Adiposidade pura. Em casa tocou na barriga, beliscou-a e quase sentiu a textura úmida e oleosa da gordura que certamente abundava por debaixo da pele.

Olhando-se fixamente pensou e concluiu que teria que ser mais drástica.

Adotou um regime espartano que com o hábito se tornou espontâneo como um jeito de ser. Levantava atrasada para a escola a fim de passar direto pelo café da manhã, dizendo para a mãe que comeria na escola. Quando era obrigada a levar um sanduíche ou uma fruta, dava de comer a um menino que via na rua ou jogava no lixo. A hora do almoço era a mais difícil – ia à casa de Ana pra com ela trocar idéias sobre novas dietas de sopas e shakes magros e voltar pra casa tendo mentirosamente já almoçado. Este, quando de fato havia, era uma fruta ou uns biscoitos.

Todas as roupas de Camila estavam enfim frouxas e dentro dela a menina parecia flutuar. Era impossível não notar agora, inclusive as maçãs do rosto, óbvias e claras.

Mas a mãe de Camila, talvez devido ao que também via nas novelas e por saber que era traída pelo marido, certamente por uma mulher magra como ela já não era há décadas, só foi notar que a filha estava doente quando a viu tentar comer um tomate e sair correndo na direção do banheiro pra vomitar. Um repentino alarme soou, e com a filha nos braços foi ao hospital. Camila era leve... como quando tinha dez anos.

No fim do sétimo dia de agonia muda passada na cama branca da UTI, Camila descia a cova, aos braços dos homens desconsertados pelo quase nenhum esforço que faziam para baixar o caixão ao fundo da terra. O vento soprava nos vestidos pretos das amigas, marcando cada uma de suas silhuetas magras e secas, as quais casavam tão bem com a morte, que todos choraram copiosa e espantadamente.

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