Eu quero acreditar que para apenas
0,0000025 das duas ou três pessoas que me leem muçulmanos são pessoas morenas com turbante na cabeça, que falam uma língua cheia de Ls e Rs e que vivem
empunhando rifles sob um sol escaldante...
Diante do que se vê hoje na
mídia, de fato é difícil visualizar a Era de Ouro árabe, tão admirada por
pessoas como Jorge Luis Borges, quando a Europa era um continente primitivo e
sujo que queimava pessoas, enquanto que os muçulmanos possuíam obras filosóficas
clássicas, e tinham azulejos limpos, e produziam grandes nomes da medicina e na química. As
Mil e Uma Noites, esse clássico incrivelmente belo e complexo, que mostra um
universo no qual, mesmo sem saber, muitos de nós já vivemos, são praticamente
impossíveis de evocar ao vermos homens-bombas explodindo, ou monstros
disfarçados de manifestantes religiosos estuprando um embaixador ameriano
antes de assassiná-lo...
Uma frase como “nem sempre os
deuses existiram” seria bombástica demais e inútil em relação ao que queria
dizer; outra como “os deuses nunca exigiram tanta dor e morte” também seria
inútil, além de mentirosa. Então passemos pra outra: “Que deuses são esses?”
No mesmo instante, haveria
certamente quem protestasse dizendo: “Questione os que seguem esses deuses, e
não os próprios deuses...”. Pois muto bem, ao invés dos deuses questionemos os crentes (até porque estes são os únicos aos quais se têm acesso imediato...
pelo menos em tese...)
Um suposto filme, chamado A Inocência dos Muçulmanos, teve um trailer
de 15 minutos ressuscitado no youtube (sim, pois o vídeo se encontrava lá desde
junho) há duas semanas: conta a história de um Maomé explorador de menores e violento, bem
longe da imagem do profeta amado e adorado por mais de um bilhão de pessoas. Todos
vimos na mídia que isso foi o bastante pra inflamar uma infitamente pequena
parcela dessa população, mas suficiente pra fazer um bom estrago em vários
países do mundo. Eu, pessoalmente, acompanhei os comentários online que as
pessoas que acabavam de ver o vídeo faziam na página do youtube, a maioria
extremista dos dois lados: americanos ignorantes e muçulmanos tão ignorantes
quanto: as palavras de ordem eram de puro e surpreendente ódio, uma
incompreensão mútua que num primeiro momento dava pena, depois medo e depois um
certo desespero...
Intocáveis 2: "Não pode debochar!"* *Tradução livre, leve e solta |
Dias depois, uma publicação satírica
francesa, Charlie Hebdo (por favor, não pronunciem, como os jornalistas daquele
triste canal de comédia política, Globo News... o correto é char-lí heb-dô), publica, meio ineptamente, uma charge retratando o
profeta Maomé... E isso pra quê? Pra jogar lenha na fogueira? Essa é a primeira
hipótese, que foi a minha. Eles queriam apenas vender mais exemplares, pois são, como
os próprios declararam ao Le Monde, gente de extrema esquerda que apenas
procuram fazer algo engraçado. Pois sim. E me pareceram sinceros, apesar de um
pouco inconsequentes. E o que fazemos com gente inconsequente? Estupramos,
prendemos e queimamos, num é não?
Eis o ponto: se os árabes já
representaram o que havia de mais avançado no passado, muita coisa aconteceu
entre os séculos XIII e XXI, muita coisa mesmo, inclusive petróleo, Estados Unidos, Rússia e cia,
com muita dose de ganância, cinismo, impiedade, racismo... Não se pode esquecer
o papel de Israel na equação toda: não é a primeira vez que se vê na história o perseguido se tornar o perseguidor...
Enfim, muita água correu e o
que temos é o que mais vemos: violência, extremismo... mesmo que praticados por
uma minoria: sim, pois é uma minoria que queima carros, que degola cidadãos,
que oprime seus pares. Mas é uma minoria organizada e articulada, que sabe cultivar
e canalizar ódios e rancores seculares na hora certa: e é isso o que acontece
agora. No mundo árabe, é bom lembrar que nem todo mundo tem acesso à mesma
quantidade de informação a que temos aqui num país como o Brasil: o trailer do
filme A Inocência dos Muçulmanos, que mais parece um episódio tosco do Chaves, tirado
do contexto e propagado em tom de ódio, foi muito bem utilizado pra incendiar
multidões de homens e mulheres que saíram às ruas gritando palavras de ordem de
uma simplicidade absurda: ABAIXO A AMÉRICA...
Voltando aos editores e desenhistas
do jornal francês Charlie Hebdo: há pouco tempo atrás, minha postura pessoal
seria a de condená-los por sua inconsequência e balançar a cabeça até com raiva
contra esses doidos irresponsáveis que só querem ver o circo pegar fogo... Mas,
sinceramente, mudei de ideia.
Fui a Paris há dois meses e as coisas que
vi lá me disseram coisas: me disseram que árabes e muçulmanos são pessoas
respeitáveis e que têm todo o direito de abandonarem seus países arrasados pela
cobiça e ingerência das antigas metrópoles, para virem viver nos países
europeus... Mas tb entendi que um eterno ressentimento não pode servir de
justificativa ou explicação válida permanente para todo tipo de reação ou ação
destrutiva por parte de grupos oprimidos, com ou sem aspas.
Sim, lá eu vi ou senti um certo
racismo no ar entre os franceses “de verdade” e os de origem árabe (mútuo, por falar nisso). Senti sim
que a igualdade no país da declaração dos direitos humanos é ainda uma utopia. Mas
tb senti outra coisa: há uma “vontade de não sair do lugar”, um desejo de “ser
como somos e ponto final” que perpassa o ânimo desses mesmos oprimidos (sem
aspas nenhumas). A postura de “sou assim e vc tem que me respeitar mesmo que
isso inclua machucar pessoas de vez em quando” seria mais um abuso do direito a
ser quem se é do que algo que realmente se grita nas ruas de Paris, sobretudo
nas da periferia. Mas é esse abuso do direito a ser que é usado para justificar
mortos e feridos nos protestos que vemos no mundo todo; é esse abuso do direito
de ser que quer calar a boca dos desenhistas e editores do Charlie Hebdo; é
esse mesmo abuso que faz com que uma instituição muçulmana chamada OIC queira que a ONU
inclua na declaração dos direitos humanos a punição à blasfêmia...
Blasfêmia, punição, deuses...
Isso lembra alguma coisa? Inquisição, Idade Média...?
Pois é. Respeitar toda e qualquer
religião deve sim ser dever de todo cidadão, brasileiro, americano, etc.
Mas temos que escolher entre os modos que podem ser utilizados para se
responder a um ato de desrespeito: na maioria dos países ocidentais, trata-se
de procurar um advogado e entrar com um processo. Este parece ser um modo
adequado para a maneira que a nossa constituição brasileira nos propõe viver: cidadãos
pluralmente constituídos vivendo em paz e harmonia (que toquem harpas...). Porém, o Extremist Arabian
Way of Punishment não condiz com o que se pensa ser mais aceitável, e por isso,
talvez um pouco mais de visão crítica sobre as manifestações induzidas pelos
extremistas muçulmanos seja necessária.
Tratar os revoltosos religosos
como crianças medievais que podem tacar fogo em tudo e que devem ser acariciadas em vez de punidas parece ser tão eficaz quanto
condená-los de maneira sumária e intolerante, como o fazem evangélicos
fundamentalistas americanos e brasileiros. Estes, aliás, se julgam bem acima
daqueles, deplorando o ódio dos homens queimados de sol de rifles na mão...
Mas olhe em volta, ou melhor ainda, olhe pra televisão: os homens de terno
diante de multidões sustentam ideias que são muito parecidas com as dos
extremistas muçulmanos quando falam das religiões dos outros: “Não podemos deixar ninguém tocar o nosso deus”, “Nossa fé é a única e verdadeira”, “Estamos em guerra
contra os ímpios”, “Nosso deus não admite outros deuses”... É como se víssemos
um espelho... mas há uma diferença: aqui neste país, como na França ou nos EUA,
a lei não é religiosa pq existe um estado laico. E isso faz toda diferença.
Por mais que um Malafaia da vida declare em alto e bom som que “os católicos
deveriam descer o cacete nos gays”, isso fica apenas nos seus sonhos, em que
provavelmente ele mesmo faria isso com trajes de sadomasoquismo... Mas (por
enquanto) ele não ousaria pôr suas ações de amor ao próximo em prática.
E porque seria aceitável que
muçulmanos, que creem num deus muito parecido, senão o mesmo, de cristãos e
judeus, façam lá o que Malafaia quer fazer aqui?
Mesmo que os desenhistas
franceses tenham de fato jogado lenha na fogueira, é bom saber que a fogueira
queimaria de qualquer jeito: parece que enquanto Ocidente e mundo árabe não
encontrarem um caminho que resulte numa maior intercompreensão, sempre haverá
pirômanos prontos pra matar seus compatriotas em nome dos deuses, a fim de
manter um pouco de poder.
O que queria dizer mesmo é que: deuses
podem até ser intocáveis, mas os que causam dor e morte em seus nomes, não. E estou
falando tanto da mulher-bomba que explodiu há dois dias quanto do jovem cristão
presente na Marcha da Família que jogou uma lata de refrigerante na cabeça de uma moça
homossexual que passava próximo...
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