quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Histórias únicas ou Viseiras de burro

Conhecer o mundo e suas coisas é conhecer suas histórias. Quando crianças ouvimos as histórias contadas pelos adultos, que as utilizam pra nos explicar o que vemos e não entendemos, como a chuva, o trovão, a morte. A curiosidade da criança faz com que absorvamos gulosamente tudo, e que tudo seja marcante no nosso modo de pensar: assim é que eu jurava que os trovões ocorriam quando duas nuvens se chocavam com força no céu nublado... Isso até que nos livros de ciência vi que a história que a minha mãe, mulher muito inteligente e criativa, contava não correspondia bem ao que chamamos de realidade. Mas no momento em que me foi dito que as nuvens se chocavam e produziam sons terríveis, aquilo fez sentido; tanto é que na minha cabeça aquela história se tinha incorporado como conhecimento válido sobre o mundo. A sorte foi que nunca precisei apresentar um trabalho científico sobre as tempestades antes de ter acesso à informação cientificamente correta...
Houve um tempo em que a chuva já foi a urina ou a saliva de Deus, o sexo já foi uma mera troca de sementes via beijo... Hoje, é óbvio que tais visões simplistas não cabem, por mais poéticas e ternas que sejam. Até o momento em que elas eram a única história conhecida, eeu não precisava me confrontar com realidades diferentes das do lar, onde havia conforto e segurança, não houve problema...

A questão é quando esse sistema de conhecimento baseado em “histórias únicas” prevalece e prossegue durante toda a vida de um ser humano. A chuva como saliva de Deus da criança pode, no adulto, se transformar em fonte de desentendimento, distância, estupidez...

Por exemplo, falemos dos estereótipos, que são versões adultas desse fenômeno da “história única”: todos nós já fizemos uso das simplificações extremas que são os estereótipos: os franceses não tomam banho, os africanos são esfomeados, gays são pervertidos, mulheres são frágeis, e por aí vai. É perfeitamente normal que se visite uma cidade ou país que não se conhece se utilizando de alguma informação ou fragmentos de informação a que se tenha tido acesso alguma vez. Ir a Paris achando que os franceses são contraditoriamente elegantes e fedorentos pode ser até aceitável; mas estar diante de pessoas educadas e ultra-limpas e ainda assim achar que as mesmas estão sujas por debaixo das roupas porque foi assim que se aprendeu, configura um certo nível de esquizofrenia, não?

Há exemplos menos cômicos do que é ser prisioneiro da viseira da burrice dos estereótipos, da versão única de uma história sobre um povo ou indivíduo: conversando com uma colega cabo-verdiana nos tempos de faculdade, ela falava do país dela com orgulho e também de como era irritante ter que explicar a pessoas curiosas e ingenuamente maldosas (ou cruelmente ingênuas) que nunca tinha montado numa girada ou passado fome ou tido um chimpanzé como animal de estimação... ou que não, não tinha parentes nem amigos que haviam morrido de aids... As lágrimas dela diziam o quanto de dor pode causar um coice de uma pessoa que se satisfaz apenas com o que ouviu falar ou o que disse um certo livro sobre tal coisa.

Pessoas pobres são ignorantes, pessoas ricas são “esclarecidas”... – os estereótipos são eficazes a tal ponto que podem simplesmente cegar diante do óbvio e ululante, diante do que está bem à nossa frente. Eles podam pessoas e grupos para caberem em pequenas gavetas que aprendemos a arrumar e organizar nos tempos de criança. A surpresa nos olhos ao ver uma mulher dirigindo bem, o “mas” na frase “é gay, mas é gente boa”, a incredulidade ao ver um africano com pós-doutorado – tudo isso são os relinchos do jumento que se assusta com tudo o que não esteja no campo de visão abarcado pelas suas viseiras... Ainda que relinchos possam machucar, seriam problemas menores se no mundo humano correspodedessem apenas a vocalizações desconexas... mas sabemos que seres humanos são bons em transformar toda e qualquer coisa em motivo para guerras e violência, e aí temos personagens malditos como o que costumo citar nos posts de protesto deste blog.

Se os jumentos com viseira dificilmente conseguem se livras das mesmas por meios próprios, é claríssimo que com seres humanos a coisa é diferente.

Ignorância mata, causa impotência, câncer e etc, mas tem cura. E essa cura passa pela curiosidade, ou menos exigentemente, pela não aceitação do que se ouviu uma vez ou de uma fonte apenas. Há vários níveis de “histórias únicas”: desde aquelas que dividem as pessoas em cristãos, gente do bem e pagãos, gente esquisita; até aquelas ideias do senhor chamado Freud, que por mais que não tenham nenhuma ou pouca base na realidade, seguem como revelação de um semideus ou de um iluminado...

Aceitar uma única versão sobre um fato, uma pessoa, um povo, uma história pode ser cômodo, pode ser o que certo grupo espera de vc. Mas se um coice seu doer em alguém, saiba que um dia o de alguém vai doer em vc também... De modo que pra evitar essas metáforas de jumentos, que tal deixar a preguiça de lado e, no mínimo, ler aquele outro jornal, consultar aquele outro autor, ou conversar com aquele outro amigo, antes de ultrassimplificar tudo e meter na gaveta do “Caso encerrado: eu sei que a vida é assim”?

P.S.: O que disse acima é praticamente uma recombinação dos elementos que Chimamanda Adichie brilhantemente apresentou numa das melhores conferências TED que já vi. Só não vejam se as viseiras não deixarem: http://www.ted.com/talks/lang/pt-br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Oráculos, destino, livre-arbítrio...

Quem já não sentiu o coração batendo forte diante daquelas cartas com ilustrações antigas e estranhas, ou daquelas previsões simplistas dos horóscopos dos jornais da vida, ou das camadas calcificadas abandonadas por seres marinhos jogadas sobre uma mesa...?

Sempre se quis saber o que há de vir – os que vêm com histórias de que “não aceito a ideia de que não sou dono do meu destino” se dizem isso mais ou menos como um mantra, mas no fundo no fundo, aquele pensamento de “maktub” uma hora ou outra vem à mente (e é uma pena que muita gente, inclusive eu, tenha ouvido essa palavra pela primeira vez na boca excessivamente faladeira de Paulo Coelho...). Não estou falando de ser adepto fundamentalista de cartas, búzios e efemérides de um lado, nem de ser pateticamente ultra-cético do outro... Estou falando daquele limite tênue entre uma coisa e outra, daqueles momentos dúbios em que por mais que não se queira, aquela ideiazinha chega, como quem não quer nada: “Tinha que acontecer...”.

Quem nunca sonhou com uma situação de perigo ou de alegria extrema, que, no dia ou dias seguintes, acabou realmente vivenciada? Ou quem nunca, meses depois de ter ouvido na voz profunda do vidente um certo destino, viu certos ou todos os elementos desfilarem no curso dos dias como eventos e fatos assombrosamente correspondentes? Pouquíssimos ousarão dizer um confiante “Nunca!” e muitos, claro, escorregarão num hipercrédulo “Várias vezes”.

Mas e aí? Ver o futuro e sua malha de fatos e feitos é mesmo um dom de algum grupo especial de seres humanos ou não-humanos? Ou simplesmente não: vivemos no presente e tudo o que há é o que vemos, sendo que o caminho só existe ao passo que o percorremos... Bem, só adianto que quem afirma com nariz empinado e certeza altiva a segunda opção deve se lembrar dos livros sagrados - Alcorão e Bíblia, por exemplo - nos quais uma boa parte do futuro da humanidade -  e, sob certas perspectivas místicas, o dos indivíduos também – está previsto. Mas se vc não for religioso, resta aquele “não sei” agnóstico e precavido, que no fundo no fundo, quer dizer “acredito mas não saio gritando isso por aí”.

Todos nós sabemos que o perigo se encontra nos extremos – aliás, quase todos nós... Parece que não sair de casa sem antes consultar algum tipo de oráculo pode ser tranquilamente classificado como um tipo de morbidez (isso sem se precisar fazer menção a qualquer tipo de “livre-arbítrio”, essa ideia tão, no mínimo, polêmica: até que ponto é livre o arbítrio de um ser humano se o mesmo depende de uma série de outros mecanismos, que hoje, sabe-se, não são nem um pouco livres nem arbitrários...?)... Porém, no entanto, todavia, afirmar com veemência de sábio incontestável que cada ser humano têm as rédeas de sua vida nas mãos, que o futuro é um a página em branco na qual escrevemos com a maior criatividade e liberdade circunstancialmente possíveis, embora seja uma visão mais respeitável – provavelmente por ser a mais condizente com o funcionamento do capitalismo – não parece ser muito saudável, se levada a extremos...

Sejamos mais claros: num sentido terapêutico, em dadas situações é muito mais efetivo convencer um amigo em dificuldades de que tudo vai dar certo, com certeza, claro, e etc – ou seja, determinismo. Mas em outras, por exemplo, em que tudo indique um final não-muito feliz, todos vão dizer que quem faz seu destino é vc e que “querer é poder”, e extrapolações do tipo. De modo que, é impossível ser uma coisa ou outra de forma completamente coerente, o tempo todo. Parece que cada um de nós tem seus momentos “a vida é minha e faço dela o que eu quiser” e de “deus escreve certo por linhas tortas”.

Se bem que a questão com que comecei era se é possível alguém ter acesso a informações privilegiadas a respeito do filme que é o mundo...

E eu sei lá! Senão vejamos:

Imaginemos uma pessoa que tranquilamente tome sua xícara de café ou litro de coca-cola na janela de um apartamento situado exatamente na esquina de duas ruas e de onde ela tenha visão privilegiada e completa das calçadas das duas ruas que se encontram. Esta mesma pessoa, observando a vida da esquina enquanto pensa sobre destino, digamos, vê se aproximarem um rapaz sobre seu skate e uma senhora com um vaso de flores, cada um numa rua, em direção à esquina. Com a xícara ou a garrafa na mão, a pessoa, que é um travesti, suponhamos, solta um pequeno riso ao ver que o choque inevitável entre a senhora e o skatista não produz nenhum efeito grave a não ser a surpresa, sobretudo da velhinha, e do vaso que ao cair no chão, felizmente não se quebrou. É claro que nosso observador travesti não compartilha da surpresa da velhinha singela e do skatista emo, pois ela já sabia...

Teóricos da teoria dos sistemas já diziam que quanto mais informação se tiver da posição e da interação de um sistema em um dado momento, mais fácil será para prever suas posições e interações no futuro... Ou seja, quanto mais se sabe do presente, mais se sabe do futuro. Claro e evidente... Se não fosse assim não existiria medicina nem química. Mas aí vêm teóricos da teoria do caos dizendo que há variáveis que são funções de aspectos mais ou menos desconhecidos do funcionamento desses mesmos sistemas, que interferem no presente de maneira tal que se torna praticamente impossível a previsão do futuro... ou seja, seja o que deus quiser. Efeito borboleta nos couros das pessoas...

E então?

E então que beber com moderação de cada um dos remédios pode ser uma solução ótima: tira o perigo de uma pessoa se tornar uma marionete sem ação que só funciona à base de tarô e signos e ascendentes e etc, ao mesmo tempo que se impede que alguém se perca num canto do labirinto da vida, batendo a cabeça contra o mundo, ou se aventurando de forma louca e desequilibrada...

E ainda sobra a questão sobre se é mesmo bom e útil se conhecer o futuro. Por exemplo, se vc fica sabendo agora, nesse instante, que está vivendo seus últimos dias de vida, vc vai realmentese sentir melhor e mais sábio, ou o stress e ansiedade vão estragar tudo de um jeito que a dádiva de informações vindas do futuro acabarão por bagunçar todo o presente? Outra questão que se segue seria: sabendo desse futuro, poderia mudá-lo? Ou “a pessoa é para o que nasce”, como dizem as ceguinhas de Campina Grande, e nada poderia ser feito?

Tá vendo, quem mandou começar a pensar sobre isso...

Bem, sei é que a vida continua, e agradeçamos a não sei quem por essa sensação muito convincente de “livre-arbítrio” com que vivemos, mesmo que em momentos pontuais na saga pessoal de cada um, entendamos que há uma grande possibilidade de que isso seja pura e terapêutica literatura.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O Jardim

O jardim


Sou como todo mundo, quando nasci não sabia o que era. No início do começo, minha existência se constituía de um ponto de vida. Vida ínfima. Sem saber de mim o meu derredor todo é que se fazia, a flutuar eu no limiar do pensamento. Tudo escuro, morno, úmido. Aí então, a partir de um momento primordial das coisas e de mim, viver e existir foram se compondo e comutando, em etapas, em cascas. Talvez com assombro eu tenha assistido água e pó me virarem na simetria do plano invisível que governa a terra - mas se o fiz, esqueci. Lembro da música, da voz de trovão, da de vento em flauta ou ira, e também do silêncio mais puro que já houve. Intempéries, emoções da hora, indo a vida e vindo.

Lembro da gênese da minha ousada ingenuidade, que tudo queria, na arrogância de achar que podia mais, apenas por ter podido uma vez, sem querer, viver. Ao longo dos dias e das noites sentia que escalava patamares mais sutis e complexos de possibilidades. Apêndices formavam-se segundo intrincada arquitetura antiga e nova ao mesmo tempo, nunca até hoje superada. Em nada notei mãos de artista, nada da marca individual de uma vontade clara – o que não é juízo, apenas leve constatação. Sei é que entre o mundo e eu há como que um sonho, e o que aqui digo é seu enredo, sem interesse. Pois falo comigo no tom de um rio que a si mesmo murmura águas. E são inexatas as coisas. Por exemplo, o mistério é eu não saber de onde vim: no bico de um pássaro, de uma semente de onde, de origem nebulosa, uma questão sem resposta... Os pássaros voam muito e vão longe, e por não falar a sua língua, fico quieto ignorando rotas e histórias. As flores belamente não se importam, em exército as abelhas de cor em cor trabalham e até à morte dançam...

Desde pequeno sinto e sigo o chamado do alto, modulado sempre pela tenacidade da voz da terra. Cada dia é uma luta, num banho diário de luz, ao sopro do vento morno. A minha fidelíssima sombra, ao chegar do fim do dia, cresce sem tamanho até se fundir com a geral da noite, em infinitos matizes de escuros e sonhos. O dia seguinte vem depois na roda dos ciclos com meu devido quinhão de sombra e luz novamente.

Meus atributos são largos e todos, porque não tenho nenhum. Não sinto a função, se é que tenho uma, por isso me interesso somente no nível que cada momento pede, o qual quase sempre é baixo, ou zero. A solidão me ensina tanto quanto a companhia daqueles com quem casualmente vivo. O silêncio da tarde tórrida me agrada e eu penso muito, muito, muito, suspirando. À noite eu respiro.

Antes, à tardinha, vem meu melhor amigo, com quem falo menos que o que queria, pois nos separa a barreira da linguagem. É uma amizade boa e agradável, no entanto. Na manhã em que o conheci logo vi como era inquieto, agitado, um tanto medroso. Dava a sua voz ao dia o dia inteiro, ávido, rápido. Era como um mundo que fosse acabar no dia seguinte. Sempre o admirei pela leveza e facilidade sua de viver. Ele mesmo, em alguns gestos de asa e cabeça, demonstrava mesmo seu orgulho e um tipo sem peso de altivez por suas habilidades próprias.

Porém logo vi também que poder ele voar pelo jardim e pela mata, solto no vento como nunca poderia eu ser, tinha seu preço: parece que o conheci ontem, mas segundo o que ele diz, em sua memória a minha figura alta e forte, verde, marrom, esteve sempre presente, ou aí figura desde que se entende por pássaro. Surpreso, sondando as histórias de minhas cascas e folhagens, de fato encontro na lembrança, muitas vidas e épocas esparsas; ao longo do tapete da passagem dos anos, milhões de abelhas, bilhões de formigas, besouros, milhares de pássaros e infinitos pardais... e entre estes descubro talvez esse que se aninhou em mim e sobre mim dormita...

Mas o que me importa o que eu não sei? O que me importa se na duração de um dia mil criaturas tristes e felizes riem e choram ao meu pé, na minha sombra? Que valor maior do que a qualidade de cristal candente dessa luz, têm seus sons sem sentido? Em minha volta, como o pardal nos meus braços, os homens montam seus ninhos de pedra, e os destroem, e sem saber como é a vida, vivem-na, assim, sem saber que não sabem...

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