quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Não toque no meu deus


Eu quero acreditar que para apenas 0,0000025 das duas ou três pessoas que me leem muçulmanos são pessoas morenas com turbante na cabeça, que falam uma língua cheia de Ls e Rs e que vivem empunhando rifles sob um sol escaldante...

Diante do que se vê hoje na mídia, de fato é difícil visualizar a Era de Ouro árabe, tão admirada por pessoas como Jorge Luis Borges, quando a Europa era um continente primitivo e sujo que queimava pessoas, enquanto que os muçulmanos possuíam obras filosóficas clássicas, e tinham azulejos limpos, e produziam grandes nomes da medicina e na química. As Mil e Uma Noites, esse clássico incrivelmente belo e complexo, que mostra um universo no qual, mesmo sem saber, muitos de nós já vivemos, são praticamente impossíveis de evocar ao vermos homens-bombas explodindo, ou monstros disfarçados de manifestantes  religiosos estuprando um embaixador ameriano antes de assassiná-lo...

Uma frase como “nem sempre os deuses existiram” seria bombástica demais e inútil em relação ao que queria dizer; outra como “os deuses nunca exigiram tanta dor e morte” também seria inútil, além de mentirosa. Então passemos pra outra: “Que deuses são esses?”

No mesmo instante, haveria certamente quem protestasse dizendo: “Questione os que seguem esses deuses, e não os próprios deuses...”. Pois muto bem, ao invés dos deuses questionemos os crentes  (até porque estes são os únicos aos quais se têm acesso imediato... pelo menos em tese...)

Um suposto filme, chamado A Inocência dos Muçulmanos, teve um trailer de 15 minutos ressuscitado no youtube (sim, pois o vídeo se encontrava lá desde junho) há duas semanas: conta a história de um Maomé explorador de menores e violento, bem longe da imagem do profeta amado e adorado por mais de um bilhão de pessoas. Todos vimos na mídia que isso foi o bastante pra inflamar uma infitamente pequena parcela dessa população, mas suficiente pra fazer um bom estrago em vários países do mundo. Eu, pessoalmente, acompanhei os comentários online que as pessoas que acabavam de ver o vídeo faziam na página do youtube, a maioria extremista dos dois lados: americanos ignorantes e muçulmanos tão ignorantes quanto: as palavras de ordem eram de puro e surpreendente ódio, uma incompreensão mútua que num primeiro momento dava pena, depois medo e depois um certo desespero...

Intocáveis 2: "Não pode debochar!"*
*Tradução livre, leve e solta
Dias depois, uma publicação satírica francesa, Charlie Hebdo (por favor, não pronunciem, como os jornalistas daquele triste canal de comédia política, Globo News... o correto é char-lí heb-dô), publica, meio ineptamente, uma charge retratando o profeta Maomé... E isso pra quê? Pra jogar lenha na fogueira? Essa é a primeira hipótese, que foi a minha. Eles queriam apenas vender mais exemplares, pois são, como os próprios declararam ao Le Monde, gente de extrema esquerda que apenas procuram fazer algo engraçado. Pois sim. E me pareceram sinceros, apesar de um pouco inconsequentes. E o que fazemos com gente inconsequente? Estupramos, prendemos e queimamos, num é não?

Eis o ponto: se os árabes já representaram o que havia de mais avançado no passado, muita coisa aconteceu entre os séculos XIII e XXI, muita coisa mesmo, inclusive petróleo, Estados Unidos, Rússia e cia, com muita dose de ganância, cinismo, impiedade, racismo... Não se pode esquecer o papel de Israel na equação toda: não é a primeira vez que se vê na história o perseguido se tornar o perseguidor...

Enfim, muita água correu e o que temos é o que mais vemos: violência, extremismo... mesmo que praticados por uma minoria: sim, pois é uma minoria que queima carros, que degola cidadãos, que oprime seus pares. Mas é uma minoria organizada e articulada, que sabe cultivar e canalizar ódios e rancores seculares na hora certa: e é isso o que acontece agora. No mundo árabe, é bom lembrar que nem todo mundo tem acesso à mesma quantidade de informação a que temos aqui num país como o Brasil: o trailer do filme A Inocência dos Muçulmanos, que mais parece um episódio tosco do Chaves, tirado do contexto e propagado em tom de ódio, foi muito bem utilizado pra incendiar multidões de homens e mulheres que saíram às ruas gritando palavras de ordem de uma simplicidade absurda: ABAIXO A AMÉRICA...

Voltando aos editores e desenhistas do jornal francês Charlie Hebdo: há pouco tempo atrás, minha postura pessoal seria a de condená-los por sua inconsequência e balançar a cabeça até com raiva contra esses doidos irresponsáveis que só querem ver o circo pegar fogo... Mas, sinceramente, mudei de ideia.

Fui a Paris há dois meses e as coisas que vi lá me disseram coisas: me disseram que árabes e muçulmanos são pessoas respeitáveis e que têm todo o direito de abandonarem seus países arrasados pela cobiça e ingerência das antigas metrópoles, para virem viver nos países europeus... Mas tb entendi que um eterno ressentimento não pode servir de justificativa ou explicação válida permanente para todo tipo de reação ou ação destrutiva por parte de grupos oprimidos, com ou sem aspas.

Sim, lá eu vi ou senti um certo racismo no ar entre os franceses “de verdade” e os de origem árabe (mútuo, por falar nisso). Senti sim que a igualdade no país da declaração dos direitos humanos é ainda uma utopia. Mas tb senti outra coisa: há uma “vontade de não sair do lugar”, um desejo de “ser como somos e ponto final” que perpassa o ânimo desses mesmos oprimidos (sem aspas nenhumas). A postura de “sou assim e vc tem que me respeitar mesmo que isso inclua machucar pessoas de vez em quando” seria mais um abuso do direito a ser quem se é do que algo que realmente se grita nas ruas de Paris, sobretudo nas da periferia. Mas é esse abuso do direito a ser que é usado para justificar mortos e feridos nos protestos que vemos no mundo todo; é esse abuso do direito de ser que quer calar a boca dos desenhistas e editores do Charlie Hebdo; é esse mesmo abuso que faz com que uma instituição muçulmana chamada OIC queira que a ONU inclua na declaração dos direitos humanos a punição à blasfêmia...

Blasfêmia, punição, deuses... Isso lembra alguma coisa? Inquisição, Idade Média...?

Pois é. Respeitar toda e qualquer religião deve sim ser dever de todo cidadão, brasileiro, americano, etc. Mas temos que escolher entre os modos que podem ser utilizados para se responder a um ato de desrespeito: na maioria dos países ocidentais, trata-se de procurar um advogado e entrar com um processo. Este parece ser um modo adequado para a maneira que a nossa constituição brasileira nos propõe viver: cidadãos pluralmente constituídos vivendo em paz e harmonia (que toquem harpas...). Porém, o Extremist Arabian Way of Punishment não condiz com o que se pensa ser mais aceitável, e por isso, talvez um pouco mais de visão crítica sobre as manifestações induzidas pelos extremistas muçulmanos seja necessária.

Tratar os revoltosos religosos como crianças medievais que podem tacar fogo em tudo e que devem ser acariciadas em vez de punidas parece ser tão eficaz quanto condená-los de maneira sumária e intolerante, como o fazem evangélicos fundamentalistas americanos e brasileiros. Estes, aliás, se julgam bem acima daqueles, deplorando o ódio dos homens queimados de sol de rifles na mão... Mas olhe em volta, ou melhor ainda, olhe pra televisão: os homens de terno diante de multidões sustentam ideias que são muito parecidas com as dos extremistas muçulmanos quando falam das religiões dos outros: “Não podemos deixar ninguém tocar o nosso deus”, “Nossa fé é a única e verdadeira”, “Estamos em guerra contra os ímpios”, “Nosso deus não admite outros deuses”... É como se víssemos um espelho... mas há uma diferença: aqui neste país, como na França ou nos EUA, a lei não é religiosa pq existe um estado laico. E isso faz toda diferença. Por mais que um Malafaia da vida declare em alto e bom som que “os católicos deveriam descer o cacete nos gays”, isso fica apenas nos seus sonhos, em que provavelmente ele mesmo faria isso com trajes de sadomasoquismo... Mas (por enquanto) ele não ousaria pôr suas ações de amor ao próximo em prática.

E porque seria aceitável que muçulmanos, que creem num deus muito parecido, senão o mesmo, de cristãos e judeus, façam lá o que Malafaia quer fazer aqui?

Mesmo que os desenhistas franceses tenham de fato jogado lenha na fogueira, é bom saber que a fogueira queimaria de qualquer jeito: parece que enquanto Ocidente e mundo árabe não encontrarem um caminho que resulte numa maior intercompreensão, sempre haverá pirômanos prontos pra matar seus compatriotas em nome dos deuses, a fim de manter um pouco de poder.

O que queria dizer mesmo é que: deuses podem até ser intocáveis, mas os que causam dor e morte em seus nomes, não. E estou falando tanto da mulher-bomba que explodiu há dois dias quanto do jovem cristão presente na Marcha da Família que jogou uma lata de refrigerante na cabeça de uma moça homossexual que passava próximo...

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Histórias únicas ou Viseiras de burro

Conhecer o mundo e suas coisas é conhecer suas histórias. Quando crianças ouvimos as histórias contadas pelos adultos, que as utilizam pra nos explicar o que vemos e não entendemos, como a chuva, o trovão, a morte. A curiosidade da criança faz com que absorvamos gulosamente tudo, e que tudo seja marcante no nosso modo de pensar: assim é que eu jurava que os trovões ocorriam quando duas nuvens se chocavam com força no céu nublado... Isso até que nos livros de ciência vi que a história que a minha mãe, mulher muito inteligente e criativa, contava não correspondia bem ao que chamamos de realidade. Mas no momento em que me foi dito que as nuvens se chocavam e produziam sons terríveis, aquilo fez sentido; tanto é que na minha cabeça aquela história se tinha incorporado como conhecimento válido sobre o mundo. A sorte foi que nunca precisei apresentar um trabalho científico sobre as tempestades antes de ter acesso à informação cientificamente correta...
Houve um tempo em que a chuva já foi a urina ou a saliva de Deus, o sexo já foi uma mera troca de sementes via beijo... Hoje, é óbvio que tais visões simplistas não cabem, por mais poéticas e ternas que sejam. Até o momento em que elas eram a única história conhecida, eeu não precisava me confrontar com realidades diferentes das do lar, onde havia conforto e segurança, não houve problema...

A questão é quando esse sistema de conhecimento baseado em “histórias únicas” prevalece e prossegue durante toda a vida de um ser humano. A chuva como saliva de Deus da criança pode, no adulto, se transformar em fonte de desentendimento, distância, estupidez...

Por exemplo, falemos dos estereótipos, que são versões adultas desse fenômeno da “história única”: todos nós já fizemos uso das simplificações extremas que são os estereótipos: os franceses não tomam banho, os africanos são esfomeados, gays são pervertidos, mulheres são frágeis, e por aí vai. É perfeitamente normal que se visite uma cidade ou país que não se conhece se utilizando de alguma informação ou fragmentos de informação a que se tenha tido acesso alguma vez. Ir a Paris achando que os franceses são contraditoriamente elegantes e fedorentos pode ser até aceitável; mas estar diante de pessoas educadas e ultra-limpas e ainda assim achar que as mesmas estão sujas por debaixo das roupas porque foi assim que se aprendeu, configura um certo nível de esquizofrenia, não?

Há exemplos menos cômicos do que é ser prisioneiro da viseira da burrice dos estereótipos, da versão única de uma história sobre um povo ou indivíduo: conversando com uma colega cabo-verdiana nos tempos de faculdade, ela falava do país dela com orgulho e também de como era irritante ter que explicar a pessoas curiosas e ingenuamente maldosas (ou cruelmente ingênuas) que nunca tinha montado numa girada ou passado fome ou tido um chimpanzé como animal de estimação... ou que não, não tinha parentes nem amigos que haviam morrido de aids... As lágrimas dela diziam o quanto de dor pode causar um coice de uma pessoa que se satisfaz apenas com o que ouviu falar ou o que disse um certo livro sobre tal coisa.

Pessoas pobres são ignorantes, pessoas ricas são “esclarecidas”... – os estereótipos são eficazes a tal ponto que podem simplesmente cegar diante do óbvio e ululante, diante do que está bem à nossa frente. Eles podam pessoas e grupos para caberem em pequenas gavetas que aprendemos a arrumar e organizar nos tempos de criança. A surpresa nos olhos ao ver uma mulher dirigindo bem, o “mas” na frase “é gay, mas é gente boa”, a incredulidade ao ver um africano com pós-doutorado – tudo isso são os relinchos do jumento que se assusta com tudo o que não esteja no campo de visão abarcado pelas suas viseiras... Ainda que relinchos possam machucar, seriam problemas menores se no mundo humano correspodedessem apenas a vocalizações desconexas... mas sabemos que seres humanos são bons em transformar toda e qualquer coisa em motivo para guerras e violência, e aí temos personagens malditos como o que costumo citar nos posts de protesto deste blog.

Se os jumentos com viseira dificilmente conseguem se livras das mesmas por meios próprios, é claríssimo que com seres humanos a coisa é diferente.

Ignorância mata, causa impotência, câncer e etc, mas tem cura. E essa cura passa pela curiosidade, ou menos exigentemente, pela não aceitação do que se ouviu uma vez ou de uma fonte apenas. Há vários níveis de “histórias únicas”: desde aquelas que dividem as pessoas em cristãos, gente do bem e pagãos, gente esquisita; até aquelas ideias do senhor chamado Freud, que por mais que não tenham nenhuma ou pouca base na realidade, seguem como revelação de um semideus ou de um iluminado...

Aceitar uma única versão sobre um fato, uma pessoa, um povo, uma história pode ser cômodo, pode ser o que certo grupo espera de vc. Mas se um coice seu doer em alguém, saiba que um dia o de alguém vai doer em vc também... De modo que pra evitar essas metáforas de jumentos, que tal deixar a preguiça de lado e, no mínimo, ler aquele outro jornal, consultar aquele outro autor, ou conversar com aquele outro amigo, antes de ultrassimplificar tudo e meter na gaveta do “Caso encerrado: eu sei que a vida é assim”?

P.S.: O que disse acima é praticamente uma recombinação dos elementos que Chimamanda Adichie brilhantemente apresentou numa das melhores conferências TED que já vi. Só não vejam se as viseiras não deixarem: http://www.ted.com/talks/lang/pt-br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Oráculos, destino, livre-arbítrio...

Quem já não sentiu o coração batendo forte diante daquelas cartas com ilustrações antigas e estranhas, ou daquelas previsões simplistas dos horóscopos dos jornais da vida, ou das camadas calcificadas abandonadas por seres marinhos jogadas sobre uma mesa...?

Sempre se quis saber o que há de vir – os que vêm com histórias de que “não aceito a ideia de que não sou dono do meu destino” se dizem isso mais ou menos como um mantra, mas no fundo no fundo, aquele pensamento de “maktub” uma hora ou outra vem à mente (e é uma pena que muita gente, inclusive eu, tenha ouvido essa palavra pela primeira vez na boca excessivamente faladeira de Paulo Coelho...). Não estou falando de ser adepto fundamentalista de cartas, búzios e efemérides de um lado, nem de ser pateticamente ultra-cético do outro... Estou falando daquele limite tênue entre uma coisa e outra, daqueles momentos dúbios em que por mais que não se queira, aquela ideiazinha chega, como quem não quer nada: “Tinha que acontecer...”.

Quem nunca sonhou com uma situação de perigo ou de alegria extrema, que, no dia ou dias seguintes, acabou realmente vivenciada? Ou quem nunca, meses depois de ter ouvido na voz profunda do vidente um certo destino, viu certos ou todos os elementos desfilarem no curso dos dias como eventos e fatos assombrosamente correspondentes? Pouquíssimos ousarão dizer um confiante “Nunca!” e muitos, claro, escorregarão num hipercrédulo “Várias vezes”.

Mas e aí? Ver o futuro e sua malha de fatos e feitos é mesmo um dom de algum grupo especial de seres humanos ou não-humanos? Ou simplesmente não: vivemos no presente e tudo o que há é o que vemos, sendo que o caminho só existe ao passo que o percorremos... Bem, só adianto que quem afirma com nariz empinado e certeza altiva a segunda opção deve se lembrar dos livros sagrados - Alcorão e Bíblia, por exemplo - nos quais uma boa parte do futuro da humanidade -  e, sob certas perspectivas místicas, o dos indivíduos também – está previsto. Mas se vc não for religioso, resta aquele “não sei” agnóstico e precavido, que no fundo no fundo, quer dizer “acredito mas não saio gritando isso por aí”.

Todos nós sabemos que o perigo se encontra nos extremos – aliás, quase todos nós... Parece que não sair de casa sem antes consultar algum tipo de oráculo pode ser tranquilamente classificado como um tipo de morbidez (isso sem se precisar fazer menção a qualquer tipo de “livre-arbítrio”, essa ideia tão, no mínimo, polêmica: até que ponto é livre o arbítrio de um ser humano se o mesmo depende de uma série de outros mecanismos, que hoje, sabe-se, não são nem um pouco livres nem arbitrários...?)... Porém, no entanto, todavia, afirmar com veemência de sábio incontestável que cada ser humano têm as rédeas de sua vida nas mãos, que o futuro é um a página em branco na qual escrevemos com a maior criatividade e liberdade circunstancialmente possíveis, embora seja uma visão mais respeitável – provavelmente por ser a mais condizente com o funcionamento do capitalismo – não parece ser muito saudável, se levada a extremos...

Sejamos mais claros: num sentido terapêutico, em dadas situações é muito mais efetivo convencer um amigo em dificuldades de que tudo vai dar certo, com certeza, claro, e etc – ou seja, determinismo. Mas em outras, por exemplo, em que tudo indique um final não-muito feliz, todos vão dizer que quem faz seu destino é vc e que “querer é poder”, e extrapolações do tipo. De modo que, é impossível ser uma coisa ou outra de forma completamente coerente, o tempo todo. Parece que cada um de nós tem seus momentos “a vida é minha e faço dela o que eu quiser” e de “deus escreve certo por linhas tortas”.

Se bem que a questão com que comecei era se é possível alguém ter acesso a informações privilegiadas a respeito do filme que é o mundo...

E eu sei lá! Senão vejamos:

Imaginemos uma pessoa que tranquilamente tome sua xícara de café ou litro de coca-cola na janela de um apartamento situado exatamente na esquina de duas ruas e de onde ela tenha visão privilegiada e completa das calçadas das duas ruas que se encontram. Esta mesma pessoa, observando a vida da esquina enquanto pensa sobre destino, digamos, vê se aproximarem um rapaz sobre seu skate e uma senhora com um vaso de flores, cada um numa rua, em direção à esquina. Com a xícara ou a garrafa na mão, a pessoa, que é um travesti, suponhamos, solta um pequeno riso ao ver que o choque inevitável entre a senhora e o skatista não produz nenhum efeito grave a não ser a surpresa, sobretudo da velhinha, e do vaso que ao cair no chão, felizmente não se quebrou. É claro que nosso observador travesti não compartilha da surpresa da velhinha singela e do skatista emo, pois ela já sabia...

Teóricos da teoria dos sistemas já diziam que quanto mais informação se tiver da posição e da interação de um sistema em um dado momento, mais fácil será para prever suas posições e interações no futuro... Ou seja, quanto mais se sabe do presente, mais se sabe do futuro. Claro e evidente... Se não fosse assim não existiria medicina nem química. Mas aí vêm teóricos da teoria do caos dizendo que há variáveis que são funções de aspectos mais ou menos desconhecidos do funcionamento desses mesmos sistemas, que interferem no presente de maneira tal que se torna praticamente impossível a previsão do futuro... ou seja, seja o que deus quiser. Efeito borboleta nos couros das pessoas...

E então?

E então que beber com moderação de cada um dos remédios pode ser uma solução ótima: tira o perigo de uma pessoa se tornar uma marionete sem ação que só funciona à base de tarô e signos e ascendentes e etc, ao mesmo tempo que se impede que alguém se perca num canto do labirinto da vida, batendo a cabeça contra o mundo, ou se aventurando de forma louca e desequilibrada...

E ainda sobra a questão sobre se é mesmo bom e útil se conhecer o futuro. Por exemplo, se vc fica sabendo agora, nesse instante, que está vivendo seus últimos dias de vida, vc vai realmentese sentir melhor e mais sábio, ou o stress e ansiedade vão estragar tudo de um jeito que a dádiva de informações vindas do futuro acabarão por bagunçar todo o presente? Outra questão que se segue seria: sabendo desse futuro, poderia mudá-lo? Ou “a pessoa é para o que nasce”, como dizem as ceguinhas de Campina Grande, e nada poderia ser feito?

Tá vendo, quem mandou começar a pensar sobre isso...

Bem, sei é que a vida continua, e agradeçamos a não sei quem por essa sensação muito convincente de “livre-arbítrio” com que vivemos, mesmo que em momentos pontuais na saga pessoal de cada um, entendamos que há uma grande possibilidade de que isso seja pura e terapêutica literatura.