Deitar, fechar os olhos e sentir
que o mundo inexiste durante horas para no dia seguinte voltar à vida. Dormir é
das coisas mais elementares da nossa vida. Em geral, ninguém quebra a cabeça
pra entender o que é o sono: mero momento de repouso: tá cansado, dorme e
pronto.
Mas é claro que não é bem assim.
Você já pensou como é no mínimo surpreendente que nós, mamíferos tão atarefados
e ansiosos, passemos um terço de nossa vida deitados, imóveis, apenas
respirando e digerindo, enquanto que a vida continua “lá fora”, rápida e plena?
Cedendo ao gosto atual pelas
estatísticas calculemos, se vc tiver a “sorte” de viver 100 anos, aproximadamente
33,333333 dos seus preciosos anos terão sido dedicados ao sono! Nossa, que
coisa não? E daí?
E daí que cientistas, pensadores,
sacerdotes e curandeiros de todos os tempos já pensaram no assunto e pra tentar
entender porque os seres humanos não apenas dormem, mas precisam dormir tanto,
inventaram as teorias mais diversas e criativas.
De viagens espirituais noturnas
até uma mera sessão de recarga mental e muscular, o sono pode ser visto de
inúmeras formas. Só mais recentemente, pesquisas mais profundas têm mostrado
como simplesmente não sabemos quase que coisa nenhuma sobre o sono. Reduzir as
oito horas que passamos de olhos fechados a um período em que a memória se
conserva e os músculos relaxam é tão simplista que, como quase todo tipo de
simplificação, chega a ser pateticamente burro...
Qualquer ser humano normal sabe
que dormir é muito, mais muito mais do que descansar.
Quem diz sono diz sonho, e quem
diz sonho diz altas histórias. Lembre a sua. Não é incrível do que nosso
cérebro/corpo é capaz de criar durante essas horas em que nos fechamos para o
mundo e somos apenas nós diante de nós mesmos para nós mesmos? Não é à toa que
Jorge Luis Borges diz que o sonho é a primeira narrativa que o homem produz na vida
– a narrativa universal... Encantador imaginar cada ser humano como um autor de
histórias incríveis, não?
Estudos recentes mostram que
longe de o sono ser um estado no qual o cérebro se desliga mergulhando num
estado de letargia e inutilidade total, os ciclos cerebrais incluem fases em
que o funcionamento do cérebro adormecido não perde em nada para o seu funcionamento
durante o dia: mais especificamente, durante a fase REM do sono (REM é a sigla
em inglês para movimentos rápidos dos olhos: quem nunca já ficou assistindo
alguém dormir e percebe que num dado momento – sono REM – a pessoa mexe os
olhos loucamente, balbucia frases sem sentido [ou às vezes com muito sentido
até...] e até esboça movimentos com braços e pernas?) o padrão das ondas
cerebrais é praticamente o mesmo daquele que exibimos ao longo do dia, quando
estamos trabalhando ou tentando entender a vida. É como se dentro do sono,
depois de uma fase em que o cérebro realmente parece ficar em modo off, a mente
se ligasse de novo com força total – a diferença em relação à vigília é que em
vez de o cérebro estar dedicado ao meio ambiente, ao mundo, na fase REM, o
mundo do sonhador se resume ao que ele tem dentro de si mesmo... Imagine você
abrir a porta da sua casa e se vê não dentro da sua sala, mas dentro de uma
floresta cheia de rios, de uma Paris noturna cheia de cafés ou de uma
biblioteca infinita... Pois muito bem. Quem não tem uma história boa pra contar
sobre essas autoviagens ao mundo de si mesmo?
São tantas as histórias que
muitas delas viram livros ou filmes ou ações. Gogol, Borges, Clarice, irmãos
Wachowsky, Nolan, etc, etc – todos já compartilharam trechos de seus mundos
sonhados conosco. E nem só de cenas absurdas, ambientações fantásticas, assassinatos
e premiações catárticas são feitos os sonhos... E as previsões que se tornaram
realidade no dia ou semana ou mês seguintes? E as respostas que um ente amado
já falecido oferecem de graça em meio a cenas prosaicas ou não, durante os
sonhos? E aquela pessoa que conhecemos no mundo real e que foi antecipada num
sonho...
Oito horas da vida de uma pessoa
tinham que fazer a diferença nas outras 16 de alguma maneira. Arte, religião e
ciência bebem dos sonhos e do sono, de uma maneira ou de outra. Os extremos
infantis de paraíso e inferno vêm de onde? E as cenas utópicas de pessoas
andando de mãos dadas pra sempre sem querem se matarem? Coisas de sonhos. É mais
fácil sim acreditar no lado maravilhoso, espiritual, mágico da vida quando se
pensa e se vive nos sonhos. Quem falaria de Freud hoje em dia se não fosse o
mistério que os sonhos têm para nós?
Esotéricos de um lado, cientistas
de outro, religiosos ali, céticos acolá: pessoalmente me atrai o caráter
artístico do sonho: a criatividade que minha cabecinha ansiosa demonstra de
noite me deixa confusamente orgulhoso: orgulhoso de quem? De mim? Ou do meu
corpo, que no vai e vem dos impulsos correndo pelo emaranhado de conexões dá
origem a histórias tão bonitas e cheias de detalhes inventivos? Os de que mais
gosto, tanto na literatura de verdade quanto na onírica são os sonhos dentro de
outros sonhos. Quem nunca viveu essa experiência, I’m so sorry, porque é simplesmente
incrível. A Origem exagerou o esquema, inventando uma boneca russa de sonhos de
cinco níveis – pra mim, dois bastam pra me deixar bobo: você acordar, bocejar,
pisar no chão pra logo em seguida entender que ainda não acordou – e imediatamente
então, definitivamente (ou não...) acordar – não tem preço. Há quem considere
isso a cara da psicose, da esquizofrenia: uma aluna minha disse ter se sentido
meio perdida depois de ter visto A Origem. Mas não, não tem perigo de sair por
aí se jogando do alto de edícios – o preço do feijão e do aluguel sempre me
puxarão de volta ao mundo “real”.
Claro que nem pra todo mundo
dormir é fonte de reflexões prenhes de magia e emoção. Para aqueles que têm
dificuldade de dormir, sono e pesadelo são quase a mesma coisa. Mas isso seria
tema pra outra conversa – aqui quero deixar a lembrança das imagens do cinema 3D
de nós mesmos que são as nossas histórias oníricas, projetadas nas nuvens de
algodão de uma noite bem dormida, durante a qual o mundo se torna muito maior, mais
colorido e possível do que, em geral, realmente é...
E quem quiser contar um sonho, fique à vontade.